domingo, 16 de agosto de 2015

"Sine cera"

Imagem retirada de galeriadearte.arteblog.com.br

Havia uma movimentação estranha na porta do consultório. Era habitual que, no atendimento do posto de saúde, sempre houvesse muitos risos e falatório do lado de fora, mas naquela manhã estavam muito intensos. Quando abri a porta do consultório e anunciei o nome do próximo paciente, uma figura baixinha, algo encurvada, com a expressão de quem não estava para brincadeiras gritou em alto e bom som "Ave Maria, finalmente me chamou! Deus me livre, como é que a gente espera tanto pra ser atendida, minha filha? Sou uma idosa, tenho pressão alta e diabetes, sabia? Já 'tava' passando mal!". Eu, que venho treinando o meu melhor sorriso para todas as ocasiões em que os pacientes nos veem com essas, ajudei a senhora a entrar ano consultório com o sorriso no rosto e sem dizer palavra. AFINAL, DEFINITIVAMENTE NÃO ERA A PRIMEIRA VEZ QUE LIDAVA COM UMA SITUAÇÃO ASSIM.

Ela começou então a falar dos remédios que tomava e das dores que sentia. Doía aqui e doía ali. Aparentemente estava começando uma "virose" e, depois de perguntar sobre alguns "sinais de alarme", levantei e avisei que iria examiná-la. A paciente, que já não estava tão emburrada e falava alegremente dos netos pequeninos, continuou falando quando eu lhe disse "Vou examinar seu coração, Dona Fulana". Rapidamente coloquei o estetoscópio em posição e fui ajustando o aparelho no tórax dela, sobre o foco aórtico (é por onde geralmente inicio a ausculta, localiza-se do lado direito do tórax). Ela subitamente parou de falar, me olhou como quem repreende um neto e disse:

- Não, minha filha, o coração fica do lado esquerdo do peito!

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OS PACIENTES PODEM ALGUMAS VEZES NÃO ENTENDER O QUE ESTAMS FAZENDO, E ESSA INCERTEZA ASSUSTA. Como pode ser examinada por uma médica que nem sabe que lado fica o coração? Eu expliquei àquela senhora que a gente escutava um monte de pontos no tórax pra saber se o coração estava bem, inclusive "o lado direito". Mas isso me fez lembrar das centenas de vezes que fiz esse gesto e que o paciente quis perguntar a mesma coisa e não o fez. A idosa usou da permissão que o passar dos anos nos dá para falar, falar o que a sociedade nos tolhe quando somos mais jovens. Achei bonita a sinceridade. Acho que nos engrandece um pouco ser, por vezes, confrontados. Essa é a arte de lidar com pessoas.
 
p.s.: Diz que a palavra "sincero" teve origem na Roma Antiga ("sine cera") quando, na fabricação de estátuas de mármore, os escultores desonestos cobriam as imperfeições com cera. Assim, aqueles que eram considerados honestos, não usavam deste artifício, fazendo esculturas "sem cera".

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O meu Silêncio

Imagem retirada de mensagens.culturamix.com/

Há quase sete meses eu vinha em um silêncio literário. Nenhuma palavra, nenhum novo relato. Não que eu não tivesse aprendido nada; não que eles, os pacientes, não continuassem a me ensinar mais e mais. Era um silêncio meu, a vida que nos consome. Então tive a pretensão de resumir esses dias silenciosos, mas de antemão sei que não terei como conseguir. Não tenho como falar de cada um deles e de seus ensinamentos assim, de supetão. Mas posso falar do que estive aprendendo esses dias.

...

Há alguns meses estive doente, bem doente. E pude ver como achamos sempre que somos fortes demais até que nos vemos dependentes. Mal pensamos na fragilidade da vida até que vemos que "não é bem assim". Ademais, ESSES DIAS COMO "PACIENTE" ME ENSINARAM COISAS QUE NÃO TINHA LIDO NO ROBBINS, NO PORTO OU NO HANG&DALE. Em nenhum deles me dizia que eu iria chorar por não poder mudar o rumo dos sintomas ou que eu não dormiria por noites seguidas. Mas um paciente me diria isso tranquilamente. Não, não estou desmerecendo as grande referências da Medicina, elas são ainda importantíssimas para nós, eternos acadêmicos. Entretanto, os nossos maiores aprendizados são com aqueles a quem devíamos sempre ouvir, calmamente perguntar o que eles tem a nos relatar...

Aprendi ainda nesses dias de silêncio que tem pré-julgamentos que estão tão entranhados em nossas mentes que sempre precisamos nos policiar para não voltar ao velho julgo. Como naquele dia em que eu estava sentada no banco, duas e meia da madrugada, olhando uma paciente de quinze anos a gritar, e gritar, e gritar pedindo para tirar aquela dor dela, que resolvesse a gestação agora, "Tira isso de mim", ela dizia. O que você pensaria nessa hora? Quantas vezes não foram repetidas as frases "Pra fazer foi bom" naqueles corredores, quantos olhares de julgamento ela não recebeu ao entrar nos ambulatórios, ao pegar a fila preferencial, ao entrar pela frente no ônibus. ELA CHAMOU SUA MÃE, PEGOU SUA MÃO E COLOCOU JUNTO AO SEU ROSTO. "Pede pra eles tirarem logo, mãe". Aquela senhora olhava para mim, olhos marejados e eu, covarde, desviei o olhar para o display do cardiotocógrafo.

Quando o exame terminou, depois de tentar explicar, em vão, para a paciente que tudo corria conforme o esperado, aquela mãe ainda me olhava em desespero. Chamei-a e expliquei ainda outra vez o que já havia dito - exames normais, tudo dentro do esperado. Mas aquelas não eram as palavras que ela queria ouvir, para ela só importava que sua filha não sentisse mais a dor.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Sorrisos e momentos na tela

Imagem retirada de vampir.com.br
A sinfonia do violino atinge de cheio o silêncio que estava no meu quarto fazendo-me repetir, ainda que eu não quisesse, o refrão enjoativo do Roberto Carlos. "Como é grande o meu amor por você". Não bastasse a aversão que naturalmente essa música me causava, veio em mim a lembrança de uma manhã que eu gostaria de esquecer. E como são engraçadas as lembranças, são como crianças teimosas pedindo doce às mães - você não pode ignorá-las. Então essa criança começou a espernear dentro de mim, não me deixando esquecer a repulsa que o refrão me causava.
Era dia de visita domiciliar, então havíamos saído bem cedo para ver os pacientes. Geralmente os pacientes do programa de visita são os mais complicados, alguns incapacitados de ir ao posto por diversas questões de saúde. Naquele dia, eu já estava sobrecarregada da visita anterior em que uma paciente com problemas mentais encontrava-se em uma situação precária. O sol e o calor nos castigava enquanto esperávamos que viessem abrir a porta. UM HOMEM ABRIU-A E NOS OLHOU A TODOS COM UM OLHAR IMPACIENTE, QUANDO A MÉDICA ANUNCIOU A QUE VIEMOS.
- Viemos conversar com o senhor, Seu Fulano, podemos entrar?
Ele esperou ainda alguns segundo, que me pareceram uma eternidade naquele sol fustigante. Afastou-se e permitiu que entrássemos. Perguntamos da sua saúde e as respostas vinham lentas, como se o tempo se houvesse dilatado e tudo passasse devagar. Não havia cadeira para todos e, a sala pequena, era preenchida na metade pela viva luz do sol que destoava da tristeza que o semblante do homem carregava. Ele nos disse, por fim, que nada estava bem. Havia perdido seu filho a poucos dias (três? cinco?) e nos mostrou a homenagem registrada em seu corpo que fizera para ele - apontando para o rosto bonito tatuado em seu corpo, dizia que ele não era ladrão, que era "moço bom", trabalhador. DISSE QUE ESTAVA MEDICADO PORQUE NÃO ESTAVA SUPORTANDO A DOR  DE TÊ-LO PERDIDO E DISSE QUE A SAUDADE ERA GRANDE. De repente, como se lhe houvesse soprado no ouvido, levantou rapidamente e perguntou-nos se queríamos saber como ele passava aquelas horas em que ficava sozinho, relembrando o filho. Então colocou um vídeo para assistirmos. Desde o início, eu sentira que aquele vídeo não podia fazer-lhe bem, mas quando o violino harmonioso introduziu a música como que uma fina lança me percorreu a espinha. "Como é grande o meu amor por você" dizia o verso que fora repetido mais que vinte vezes, uma música que começava e terminava, começava e terminava, e as fotos que traziam sorrisos e momentos que não voltariam. Pus-me entre a porta e o televisor para não ver as imagens, mas a música ainda vibrava e vibrava dentro de mim, reavivando a dor de um pai que perdeu seu filho no auge da vida. E OS MINUTOS INFINDOS DE SOL NAS COSTAS, PERNAS DOENDO, SEDE, CALOR SOB O JALECO SE SOMAVAM AOS ROMPANTES DO CHORO CONVULSIVO DAQUELE PAI. Lágrimas estavam correndo tímidas pelos olhos dos muitos expectadores, enxugando-as rapidamente, secando-as na calça discretamente. E o pai que soluçava, soluçava como se ritmasse "Como é grande o meu amor por você"...

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Os tão grandes olhos marejados

Imagem retirada de primeirahora.com.br
Já havíamos comentado o caso dela, discutido e rediscutido. Dez alunos e um professor, todos apertados nos jalecos brancos, os pés latejando pelas horas passadas em pé. Doze leitos com pacientes de diferentes idades, a grande maioria desacordada, e máquinas e mais máquinas apitando e piscando para nós. Olhei de lado pois um barulho me distraía. Toc toc toc tac tac, insistia o barulho. Quando virei em direção a ela o barulho aumentou de frequência e percebi que a senhora fazia um esforço grande para chamar a atenção de alguém. LEMBREI DO DIA QUE O DOUTOR TINHA ME DITO QUE O PIOR DE SE ESTAR ENTUBADO E AMARRADO (para não retirar o tubo de respiração da boca) DEVERIA SER AQUELE MOMENTO EM QUE COMEÇA UMA COCEIRINHA TEIMOSA. Coçando, coçando e você não pode coçar. Caminhei rapidamente até a senhora pensando que, se fosse a tal coceirinha teimosa, eu teria que pedir autorização ao médico para tirar as amarras que a impediam de retirar o tubo orotraqueal.
Quando a senhora percebeu que me aproximava dela, abriu para mim uns tão grandes olhos marejados que eles por si só pareciam pedir desesperadamente ajuda.
- Dona Fulana, o que aconteceu? Está precisando de alguma coisa?
Os olhos cada vez mais abertos e ela tentou balbuciar algumas palavras. Não, o tubo não deixaria ela me dizer o que queria e eu fiquei preocupada em ela achar que tinha perdido a voz.
- Dona Fulana, a senhora está com um tubo na boca, está percebendo? - ela fez que sim com a cabeça, ainda me olhando aflita - Ele está ajudando a senhora respirar. Ele também dificulta a senhora a falar, mas quando a senhora ficar melhor e conseguir respirar sem o tubo, voltará a falar, não se preocupe. Agora tente falar devagar o que a senhora quer.
- Á-gua Á-gua Á-gua... - ficou repetindo para mim.
Quando voltei com a água e expliquei que ela não conseguiria tomar, mas que eu molharia uma gaze e colocaria na boca dela, ela fez um sinal afirmativo com a cabeça. Um gole de água na gaze, outro gole de água na gaze. Assim, gole após gole, os seus olhinhos iam mostrando uma expressão mais calma. Disse que tinha que me ausentar por causa da aula, mas que ficaria ali o dia todo, caso precisasse.
Então, ouvindo o caso do outro paciente, sentia ainda pesar em mim os tão grandes olhos daquela idosa, olhos que carregavam uma história e que talvez nem estivesse entendendo ao certo o que eram todas aquelas máquinas piscando e todos aqueles indivíduos de branco, olhos que me seguiram durante toda a explicação do médico...