quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Homem Vulnerável

Imagem retirada de foz9.wordpress.com

Entramos na enfermaria e um odor desagradável irritou-me as narinas. O café-da-manhã embrulhava no meu estômago e parecia fazer toc-toc em uma porta, pedindo para sair. Concentrei-me na cena: dois homens deitados nos leitos da Urologia, sem acompanhantes, pareciam recém-acordados de uma noite bem dormida. O que estava mais próximo recebeu a todos com um sorriso aberto. O doutor que o acompanhava perguntou cordialmente como ele estava e se já estava ansioso com  a cirurgia que seria dali a pouco. Na enfermaria, um outro paciente observava a movimentação. O médico solicitou que ele saísse por alguns instantes, ao que ele concordou prontamente, levantando-se e fechando a porta atrás de si. Achei estranha a atitude, já que, de rotina, atendíamos a todos os pacientes perante os demais, sem cerimônias.
O doutor perguntou-lhe se sentia alguma dor e se poderia mostrar a região do tumor para os alunos.
- Vocês sabem o que é tumor de Buschke-Loewenstein?
Minha colega e eu nos entreolhamos. Ela disse que já ouviu este epônimo, porém não se recordava do que se tratava. O paciente baixou o short e mostrou o grande tumor nas partes íntimas, mantendo ainda o mesmo sorriso com que nos recepcionou. Disse que não tinha vergonha, afinal estávamos todos lá para aprender e em breve estaríamos salvando vidas...
"Salvando vidas", ESSAS PALAVRAS AINDA ECOAM AQUI NA MINHA CABEÇA, GIRANDO E GIRANDO COMO SE PROCURASSEM O SENTIDO EM TUDO ISSO. Um homem exposto, vulnerável, desprendido de seus pudores para salvar sua vida e nos ensinar: ensinar que não levamos nada da vida, a não ser o que de bom fazemos aos outros, o que nos faz ter a certeza de que nossa vida não é desprovida de sentido.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Nada de massas!

Imagem retirada de cliquebeleza.net
Sentada na porta de um consultório, fiquei esperando o horário de "trabalhar". Uma porção de carrinhos róseos ou azuis passavam para lá e para cá. Gritinhos e risinhos eram ouvidos a todo momento. Quando me dei conta, vários bebês e suas mães estavam por todos os lados.
É engraçado como cada mãe quer, precisa falar de suas experiências, do que viveu com aquele pequeno ser que deu certo, do que aprendeu com outras pessoas. Ficando ali, ouvi - sem ser convidada - de tudo um pouco. Em dado momento, uma delas estava se vangloriando por sua filha comer muito bem e dormir melhor ainda. Ela disse, então:
- Ah! Aveia ela adora. Quando ela termina, até pedir mais, ela pede.
Olhei para aquela pequenina, rosadinha e fortinha, e lembrei-me das horas e horas na aula de pediatria e das centenas de vezes que ouvi que criança com menos de 6 meses não deve tomar outra coisa que não leite materno e que, após isso, alimentos leves devem ser introduzidos na alimentação. Nada de massas! Lembro ainda das centenas de artigos publicados, respaldando as nossas recomendações. Nada de massas! Então me pergunto como anda a nossa comunicação com as mães, e mais: ATÉ QUE PONTO TEMOS PROPRIEDADE PARA DAR CERTAS RECOMENDAÇÕES? Geralmente, quando converso com as puérperas, elas me olham "de lado", desconfiadas. "Como essa 'criança' quer me dizer o que fazer", devem pensar. E assim seguiram as conversa, uma após outra, "desrespeitando" as nossas ordem, criando bebês fortes e rosados, dando continuidade ao curso da vida.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Toda mulher é igual

Imagem retirada de donaoncinha.com.br
Levantou a pequena blusa e mostrou a barriguinha roliça. "Cadê a manchinha? É essa aqui?". A menina faceira sorriu e disse que era essa, mas tinha outra. A mãe disse que ela mostrasse a mancha maior e a pequenina se virou, deixando a mostra um branco que parecia um pedaço de uma aquarela retirada das mão de um pintor. A mãe nos olhou interrogativa. Analisamos, friccionamos, colocamos luz. Vimos e revimos aquela pequena mácula no corpinho da criança. Ela já havia sido avaliada por uma dermatologista que lhe prescreveu uma medicação, mas não orientou a mãe, não lhe disse do que tratava e tão pouco dispendeu ao menos 2 minutos no atendimento. Perguntou à mãe se ela poderia pagar uma medicação de 70 reais. E depois perguntou se ela poderia pagar uma de 90 reais.
- POXA, DOUTORA. ELA É MINHA FILHA, EU TERIA QUE DAR UM JEITO. FICAR PERGUNTANDO SE EU POSSO PAGAR ISSO OU AQUILO EU DARIA UM JEITO!!!
Mas o que lhe preocupava deveras era o fato de a "doença" da filha ser para sempre, de ela ficar diferente da idealização que as mãe fazem: o filho perfeito, sem manchas, com todos os 20 dedos, educado, esforçado e que todos adoram! Quando penso nisso, lembro do que minha mãe sempre me dizia quando eu ficava horas na frente do espelho, inumerando as dezenas de defeitos que eu encontrava: "Não diga isso, você é perfeita. Você não sabe o quanto eu rezei para que Deus fizesse você assim". Aquilo estava longe de me consolar na época, e hoje, em frente àquela mãe, tive a certeza que a sina de muitas mãe é se desgostar em ouvir as reclamações estéticas de suas filhas... e com aquela mulher não seria diferente, independentemente de ficar apenas naquela manchinha ou não.
Como o provável diagnóstico (uma doença estética, mas que poderia evoluir com manchas em todo o corpo da criança), a mãe se mostrou bastante triste. "Deus que me perdoe, mas preferia até que fosse essa tal de hanseníase, pelo menos tem cura". Dissemos que ela também poderia usar medicações para estabilizar a doença, sem falar na possibilidade de a doença não evoluir por si só, mas eu sabia, independente do desfecho, que aquela mãe passaria pelo mesmo problema de tantas outras mães: convencer sua filha de que ela é linda, dentro da perfeição que é o ser vivo.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Rebelde com calça!

Imagem de media.photobucket.com
Adentrou o consultório nos olhando de cima a baixo. Nós, duas estudantes, estávamos encarregadas de ouvir os pacientes e repassar a história para a médica, que concluiria o atendimento. Aquele olhar dizia, ou melhor, gritava um "QUEM SÃO VOCÊS PARA ME EXAMINAR?", mas demos início ao atendimento. A adolescente relatou o que a trouxera ali e nos contou de sua ida frustrada a uma dermatologista. Anotamos os dados e exploramos um pouco mais a história da ida à outra médica, ao que ela disse que seu problema fora negligenciado e que a profissional havia dito que trataria disso em outro momento, depois de tratar das espinhas.
Quando a médica entrou no consultório e repassamos o caso, a adolescente mais uma vez disse do seu desagrado com a outra profissional e que não aguentava mais ficar em fila de espera de posto de saúde, que não tinha paciência para isso. Como estávamos rastreando doença dermatológica, a médica solicitou que ela se despisse para verificar se havia alguma mancha em seu corpo e ela olhou por detrás da franja, com a cabeça baixa e os olhos vivos, bem levantados e falou "O que?!". A médica repetiu a solicitação. Ela:
- Não, todo dia eu me olho no espelho, não tem mancha nenhuma não!
- Mas é necessário que a gente avalie, a menos que você realmente não queira - disse a médica.
- Eu não quero, não precisa - disse a adolescente e "ponto final"!
Eu e minha colega estávamos irrequietas com a situação. Não bastava o seu olhar ao entrar para nós duas, meras estudantes, depois essa recusa e, por fim, ainda disse que não tinha saco para ficar esperando atendimento em fila de posto. Fiquei pensando na história já batida do Pequeno Príncipe, quando é dito que é necessário cativar as pessoas/coisas. Pensei em como seria importante que aquela adolescente sentisse mais segurança em nosso atendimento para que se deixasse examinar e que se desarmasse. Seria essencial cativá-la para que ela pudesse ser efetivamente atendida.
Entendo que não é possível "cativar" a todos, mas é bem possível tentar. QUANDO ELA SAIU, FIQUEI COM UMA SENSAÇÃO DE TAREFA NÃO CUMPRIDA, como se me mandassem catar rosas e eu só achasse papoulas!