domingo, 31 de julho de 2011

Horror na sala de operação

A monstra desnuda, 1680, de Juan Carreño de Miranda
O que de mais importante nos impulsiona para agir nas nossas vidas é o conceito que temos do que conhecemos e o preconceito que formulamos da coisas. Assim, o texto que trago hoje é uma reflexão sobre o preconceito que influencia as nossas ações também na Medicina. Recentemente foi feita uma enquete neste blog sobre como o preconceito é percebido na nossa sociedade. Eis o resultado:


Há diversos tipos de preconceito e eles influenciam diretamente em nossa forma de lidar com o paciente. A história que trago para corroborar com essa ideia é a que presenciei em uma sala de operação. A paciente já tinha sofrido por horas devido as perfurações por bala em um assalto, foi colocada para dentro da sala. No momento de mobiliza-la de uma maca para outra, começaram as piadinhas, inicialmente baixas, trocas de olhares, risinhos. A paciente era uma moça, jovem e acima do peso. Foi feita a anestesia. Ao ser perguntado sobre como foi feita a sedação, o anestesista disse que havia usado X doses do sedativo. O seu colega caiu na gargalhada, perguntando porque a dose foi tão alta, ao que ele respondeu "Também, um bujãozinho desses, tinha que ser uma dose alta mesmo!". Durante o procedimento, os cirurgiões faziam comentários sarcásticos sobre a gordura da paciente e coisas do tipo. Logicamente ela não estava escutando, mas essa cena me fez lembrar de uma aula sobre espiritualidade que eu assisti, que a professora defendia que os pacientes podem sofrer traumas mesmo durante a anestesia, pois suas almas estariam lá naquele momento. Independente do que eu creio, ou não, o fato é que o que eu vi demonstra o total desrespeito de uma classe que deveria prezar pela igualdade de todos, sem menosprezar ninguém.
Os preconceitos que eu já pude presenciar não foram só contra pessoas acima do peso, mas contra pobres, interioranos e outros grupos de pessoas, PRÉ-ROTULADAS SEM QUE O CRITÉRIO DE "SELEÇÃO SEJA CLARO, BASEADO APENAS NA IGNORÂNCIA HUMANA. E, como sabemos, o preconceito não está só na área da saúde, mas em todos os lugares. Pessoas espancadas por intolerância, pessoas alijadas da sociedade por idiotice. Lutar contra isso depende do individual e do coletivo. Comecemos por onde podemos alcançar: o nosso próprio quintal!

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Série Sentimentos: Pacientes Ensinam a Alegria

Imagem de: coisasparacriancas.com
Alegria não se ensina, é algo que apenas se sente... é verdade? Um dia uma criança, um paciente, me ensinou a alegria. E é isso que lhes vou contar aqui!
Ele era pequenino e magrinho. Muito fora da curva de crescimento que se traça das crianças ditas "saudáveis". Chegou à emergência assim, como quem vai a uma loja que nunca havia entrado, apesar de sempre ficar observando a vitrine. Aquela criança de 14 anos sentou na maca "mal engembrada", que de princípio quase lhe derrubou. Pedimo-lhe que se deitasse, porém teimou em querer ver o que iria acontecer com aquele corte na perna. O mais interessante de tudo é que, a despeito da nossa rotina (de alertar para a criança que não vai doer muito; que logo, logo ele estaria brincando), aquele menino continuou olhando atentamente sem dizer palavra, sem parecer querer chorar. Já lhes contei a história de uma mulher que tinha trauma de agulhas? Bem, já sim (para ler essa outra história, clique aqui)! Pois foi desta história que me lembrei ao ver a seguinte cena.
A anestesia foi colocada ao redor do ferimento, e o pequenino perguntou apenas se iria furar (com a agulha) dentro do corte. Após feita a aplicação, começou a "costura" e foi ai que eu aprendi o sentido da alegria. Aqueles olhos pertenciam a uma criança - que sofrera pela vida. Cortou-se em um carrinho de catador de lixo, seria seu instrumento de trabalho? Deveras, não sei! Mas o fato é que aqueles olhos brilhavam e a sua boca desenhava um sorriso bobo que, como eu disse, parecia de quem apenas via a vitrine e agora pode adentrar à loja!
O MENINO CRESCIDO, QUE NÃO CHOROU PELA DOR, SORRIU PARA MIM E DISSE QUE NÃO DOIA. Estava fascinado porque não estava sentindo nada, apesar do vai e vem da agulha na sua pele! Então eu aprendi o que era alegria... Alegria é quando se pensa algo ruim, fica apreensivo pelo que pode acontecer e, quando acontece, tem-se a agradável notícia de que nada de ruim vai acontecer. ALEGRIA É PODER SORRIR APESAR DO QUE SE PASSOU. Alegria foi poder ter visto uma criança, dentre as tantas e tantas atendidas que, ao final do tratamento, agradeceu pelo que fizemos e saiu feliz por não estar sentindo mais nada!

sábado, 23 de julho de 2011

Com desrespeito... ou sem respeito!

Foto retirada de tchaugorduxa.blogspot.com
Bem, vergonhosa... essa é a história que tenho pra contar hoje! Tem certas coisas que nem devem ser ditas, ainda mais em tom de brincadeira.
Como em todo plantão diurno, eu ainda não tinha descansado! Fiquei o dia todo pra cima e pra baixo, sempre tinha algo para fazer. Lá pelas tantas, chegou um paciente para tratar uma doença comum, mas que na maioria dos casos pode ser evitada: as escaras! Escaras são as chamadas "úlceras de pressão", sendo ferimentos desenvolvidos pelo baixo suprimento de oxigênio para determinada região da pele, que é comprimida por longos períodos (mais informações, clique aqui). Podem ser evitadas, principalmente, com a mobilização do paciente no leito, recomendando-se que essa movimentação seja feita de duas em duas horas. Quando em estágio avançado, elas tornam-se mau cheirosas e contem pus, muito pus. Assim, chegou-nos o paciente. Uma grande região estava ulcerada, e ao começar a retirada da úlcera, a sala ficou extremamente "fedorenta".
Não bastasse o constrangimento de estar despido na frente de várias pessoas que ele não conhecia (profissionais de saúde e estudantes da área), cometeu-se o erro que tomamos conhecimento logo ao começar a estudar Medicina: NÃO SE DEVE COMENTAR SARCASTICAMENTE SOBRE AS MOLÉSTIAS DOS PACIENTES, SÓ ELE SABE O QUE ESTÁ SENTINDO E NÃO PRECISA DO NOSSO "AUXÍLIO" PARA SE SENTIR PIOR! Estudantes e alunos foram convocados, um por um, para ver o que estava sendo feito em sua escara. Todos entravam torcendo o nariz, ou falando coisas como "eca", ou fungando... O paciente, deitado e acordado, assistia à cena com se ele fosse o monstro principal de um filme de terror. Quanto mais a limpeza da ferida se aprofundava, mais o mau cheiro se acentuava e mais as pessoas comentava - comentava-se inclusive com quem estava fora da sala.
O ápice da arrogância foi quando o pus começou a sair da ferida e alguém disse que parecia com "leite condesando". Leite condensado!? Poxa, a pessoa já está triste o suficiente com aquela situação, preocupada o suficiente como o que lhe pode acontecer, e ainda tem que aguentar as pessoas rindo e fazendo comentários asquerosos sobre a sua situação?
Acredito que há momentos para se comentar tudo, e nem tudo deve ser dito na frente de quem já está fragilizado com a sua saúde! A questão é que diversas vezes não paramos para comedir nossas palavras e gestos. Não sou dona da razão, mas não é preciso ser nenhum gênio para saber que essa cena não precisava acontecer!

terça-feira, 19 de julho de 2011

Série Sentimento: Pacientes Ensinam a Preocupação

Imagem retirada do blog maepreocupada.blogspot.com
Estava dando uma olhadinha em uns blogs na rede, e deparei um que falava especificamente sobre um sentimento que nos acomapanha diariamente... a preocupação. Preocupar-se é realmente ocupar previamente seu tempo com pensamentos e cuidados de algo que pode acontecer. Em uma frase de Haddon W. Robinson diz-se: "O que te preocupa, te domina"... isso pode enlouquecer alguém. Mas há vezes que é inevitável, daí vem o sentido de eu mencionar o blog maepreocupada.blogspot.com/ : lembrou-me a preocupação de uma mãe naquilo que observo nos hospitais...

Houve um certo "reboliço" quando aquele jovem entrou na sala. Havia sido espancado por assaltantes que levaram algumas roupas dele (as que ele trazia em uma sacola e no corpo!) e o rapaz foi encontrado inconsciente. Ele estava muito apreensivo, mas, naquele momento, já falava conosco o suficiente para chamar por sua mãe.
Pouco tempo depois, aproximou-se aquela senhora. Mulher forte, já madura, entrou trazendo em seu semblante toda uma preocupação estampada. COMO DESCREVER OS TRAÇOS DO ROSTO DE UMA MÃE QUE VÊ SEU FILHO ESPANCADO IMPUNEMENTE?! Se pudessem ser resumidos a uma palavra, talvez eu escolhesse "desespero".
Feito o atendimento inicial, deixamos que mãe e filho conversassem. Ela queria saber se ele havia reagido ao que ouviu um: "mãe, eles levaram a roupa novinha, que eu acabei de ganhar!". Aquilo me surpreendeu e provavelmente à mãe também. Visivelmente incrédula com o que ele disse, ela falou que ele não deveria ligar para isso, era apenas bem material; que agradecesse, contudo, por estar vivo e sendo atendido...
Mães: estas são o que melhor traduzem o termo preocupação. Em outros plantões, presenciei também essa intensidade de sentimento (como no texto O Grande Amor) e deixo, por fim, uma reflexão aos profissionais de saúde, para que a gente aprenda a lidar com esse forte sentimento, que nos mortifica (a todos) aos poucos:
"Normalmente os homens preocupam-se mais com aquilo que não podem ver que com aquilo que podem" Júlio César, Imperador Romano

terça-feira, 12 de julho de 2011

Série Sentimentos: Pacientes Ensinam a gratidão

Imagem: regionalilheus.blogspot.com
Analisando as dezenas de sentimentos que podemos aprender em nossa vida, a gratidão é certamente o mais charmoso. Charmoso porque não tem os arroubos a que a paixão nos submete, mas não é tão passivo quanto a aceitação. SER GRATO É RECONHECER ALGO DE BOM QUE LHE FOI FEITO E NÃO POSSUIR NADA MAIS QUE PALAVRAS E GESTOS PARA PAGAR AQUELE ATO. Gratidão foi o que um dia me foi ensinado pelos pacientes...
A senhora já estava sendo atendida. Claramente desconfortável naquela maca, e sentindo dores, ela procurava algo para se distrair: começou a conversar. Como eu não estava fazendo o procedimento, pude lhe dar a atenção de que precisava para ignorar que estavam mexendo em seus ferimentos. Ela começou então a contar uma história...
Seu filho, pouco tempo após nascer, ficara doente, mas ninguém conseguia dizer o que ele tinha. Várias visitas em hospitais e vários dias se passaram, e nada de diagnosticar, muito menos dizer de que ele padecia. Seu estado de saúde piorava e ela estava desesperada com a morte iminente de sua criança. Foi quando, em mais uma visita aos médicos, um estudante (interno) olhou com outros olhos para aquele caso. Ele sugeriu que fosse solicitada um tomografia, ao que se diagnosticou abscesso cerebral.
Ela contou que ainda hoje sofre levando seu filho para se tratar, pois ainda não está completamente curado. Mas disse também que será eternamente grata àquele que olhou para seu problema e mostrou-lhe um caminho a ser seguido. E completou dizendo que muitas vezes as pessoas não querem ser atendidas por médicos novinhos (se referindo à nós, estudantes), porém ela sabia que foi um desses novinhos que a ajudou.
AO TERMINAR O PROCEDIMENTO, AGRADECEU BASTANTE E EU FIQUEI COM A SENSAÇÃO DE QUE, AINDA COMO ESTUDANTES, PODEMOS SEMPRE OFERECER ALGO A QUEM ESTÁ PRECISANDO.