sábado, 17 de março de 2012

Quando não se satisfez sua vontade...

Imagem retirada de 4.bp.blogspot.com
A voz alterada no consultório contíguo chamou atenção. Parecia alguém que brigava consigo mesmo, já que a outra voz - a que respondia - estava tão baixa que mal ouvíamos. Nós, curiosos, fomos à sala para ver do que se tratava. Encontramos o homem questionando, transtornado, porque a estudante não escrevia logo um atestado dizendo que ele estava doente por causa do estresse do seu trabalho.
- Mas senhor, eu não posso escrever isso. Isso é só uma hipótese sobre a doença.
- Mas você disse que o estresse POOOODE causar isso, não disse? Então escreva!
E completou
- Como é mesmo o seu nome? – olhou no jaleco – Ah! Fulana de Tal! Olhe, Fulana de Tal, você é tão bonitinha, mas a sua ética é feia!
A estudante olhou para a médica, que acabara de entrar na sala. Contou-lhe a história, interrompida várias vezes pelo homem. A médica ouviu, olhou-o e saiu. O HOMEM CONTINUOU O INQUÉRITO. OLHAVA NOS JALECOS OS NOSSOS NOMES E NOS PERGUNTAVA DIRETAMENTE SE ELE TINHA RAZÃO OU NÃO. Perguntou para os meus colegas e por fim, chegou a minha vez...
- É... Au... Audinne, me diga, você como médica não me daria um atestado dizendo que estou doente? Não é o meu direito como paciente, não?
- Daria sim...
- Tava vendo??? – gritou ele, interrompendo a minha fala.
- Daria um atestado dizendo que o senhor está doente, mas não colocaria que é por causa de estresse, já que não há como provar isso.
Ele me olhou sem dizer nada, afinal esta opção faria apenas a metade do que ele queria: queria um atestado que permitisse que ele se aposentasse alegando doença laboral. Mas não havia como provar isso! A médica retornou, dizendo que ele faria um tratamento lá mesmo, com outro profissional.
Ele ficou na porta, cercando-nos por algum tempo. Parecia decidido a conseguir o atestado. Bem, depois saiu, mas aquilo ficou na minha cabeça: "você é tão bonitinha, mas sua ética é feia". Decerto, um julgo incorreto... muito incorreto!


quinta-feira, 15 de março de 2012

Um caso de amor

Imagem retirada de http://portal.saude.gov.br
"DOI DEMAIS. ESQUECER DOI DEMAIS"
"E não é que doi mesmo?", pensei e imaginei como eu reagiria em uma situação dessas...
***
Um homem feito (como se diz popularmente), quase às lágrimas, contava a sua trajetória para a gente. Dizia do tempo em que passeara por diversos locais e nos fazia inveja com a sua memória de computador.
- E quando foi que o senhor fez isso, Seu Fulano?
- Foi no dia 19 de novembro de 1958 - falava assim, como se falasse do que comeu naquela manhã.
No decorrer da consulta, o seu principal problema estava exposto. A separação de sua mulher o corroia por dentro e, saudável que sempre foi, estava agora triste, com o choro fácil e tomando mais medicações.
Em um dado momento, ele disse sobre a separação:
- A gente ia fazer 60 anos de casados, mas eu considero mais porque eu conhecia ela antes... Falava com ela de manhã, antes de sair pro trabalho; à tarde, quando voltava para almoçar; e quando voltava à noite... EU VIVI QUASE A MINHA VIDA TODA AO LADO DELA. É muito sofrimento.
Nesses instantes, o seu olhar se perdia numa vastidão de cenas que decerto passeavam em sua mente, em uma valsa constante e ensurdecedora. Ele havia se desfeito de muita coisa para esquecê-la. Doou os bichos de estimação e o primeiro presente que comprou para ela. Mudou a rotina. Pediu ajuda do filho. Mas parecia tratar-se de uma doença da qual a Medicina ainda não conseguiu medicar: a saudade. Aquela saudade que doi fininho no coração e não nos deixa agir. Aquela que vem, se instala e dita quais serão as nossas ações, os nossos pensamentos e até os nossos sonhos. A saudades que não nos deixa dormir...
- Como está o sono, Seu Fulano? Tá dormindo direitinho?
- Não, tô não. Eu deito na cama e fico vendo TV. Dai, quando o sono vem eu me ajeito na cama, mas não consigo dormir.
Tudo isso depois que ela saiu de casa. Falou da desilusão, que estava se sentindo abandonado por quem mais queria bem. E, lá pelas tantas, disse uma verdade que nos mostra o quanto o nosso egoísmo nos deixa doentes e que me permitiu entender muito dele, de mim e de tantas outras pessoas...:
 "A contrariedade dá um mal-estar muito grande na gente"
E como o amor doi... como doi!

sábado, 10 de março de 2012

O dia em que errei

Imagem retirada de damien-antimatter.blogspot.com
Os atendimentos seguiam normalmente. Adolescentes e idosos eram atendidos e, por fim, o doutor-professor os via. Eu já havia ouvido falar em transferência e contra-transferência no atendimento médico. É mais ou menos quando o paciente deposita suas experiências de vida no médico e o médico deposita as suas de volta, podendo ser positivas (como quando uma paciente lembra sua vovozinha boazinha) ou negativas (quando ele lembra aquele seu vizinho insuportável). Porém, ainda não  havia acontecido comigo... até aquele dia.
Sentou-se à minha frente. A sua forma de agir não diferia em nada dos demais atendimentos daquela tarde. Apresentou um pacote de folhas, exames novinhos nos foram entregues. "Trouxe para mostrar pro doutor", disse olhando além de onde estávamos, olhando para o Doutor que estava em outra mesa logo atrás da gente, ocupado com outros pacientes. A minha colega perguntou se ele tinha pressão alta e diabetes.
- Foi pra isso que eu fiz o exame, pra saber se tenho 'diabete'.
Analisamos o exame e, de fato, ele tinha diabetes. Perguntei se sua consulta estava agendada no posto de saúde, para o dia seguinte (como havia me confirmado a agente de saúde). Ele disse que não, 'que isso e aquilo'. Em resumo: queria ser visto pelo doutor, e HOJE.
Perguntei ao médico qual seria a prescrição, na outra mesa. Quando voltei com a resposta, o paciente perguntou se o médico não veria o exame. Levei o exame ao médico, que me repetiu o que fazer.
- Ele tinha passado um remédio para mim quando me viu da outra vez - disse o paciente.
- Era um remédio grande, ... Metformina? - perguntei, já que ele não havia trazido a receita.
- Não, é um roxo, pequeno.
- Roxo... roxo... Será que é o Captopril? - pensei alto, enquanto tentava adivinhar de que medicação ele estava falando.
- Captopril é para pressão, menina! - FALOU DE MANEIRA QUE ME PARECEU DUVIDAR DE QUE EU SABIA PARA QUE SE PRESCREVIA AQUELE MEDICAMENTO.
A consulta não foi nada agradável. Difere em muito dos relatos que sempre trago a vocês... MAS EU PRECISAVA CONTAR COMO ERA UM ATENDIMENTO QUE NÃO DEU CERTO. O objetivo foi alcançado - ver os exames e medicar corretamente o paciente - mas os MEUS objetivos não foram! Sai de lá frustrada, como se os demais atendimentos do dia não houvessem sequer ocorrido. Esqueci da menina-triste e da vovozinha-que-voltou-a-estudar. Apenas aquele erro importou ao fim do dia: o dia em que não atendi corretamente, que a empatia não foi alcançada!


domingo, 4 de março de 2012

Em um mundo só seu

Imagem retirada de osconselheiros.com

Demência. Não conhecia a face dessa doença até aquele dia. Ou melhor. Conhecia em grau leve ou em livro, o que nunca é igual a deparar quem sofre. No consultório apertado, seis estudantes esperavam ansiosos seu primeiro atendimento, quando entrou aquela família. Um homem, bem idoso, caminhava com alguma dificuldade, como se houvesse esquecido que, depois de por o pé direito à frente precisava trazer o esquerdo em seguida, para andar. A filha trazia no rosto a aflição de quem passou algumas noites em claro. A esposa trazia no rosto a tristeza.
No desenrolar da consulta, histórias surpreendentes eram narradas por aquelas senhoras. Histórias de alguém que teima para vestir-se, que esquece como engolir a sopa, que não pode mais estar sozinho em casa. Visivelmente alterada, a esposa disse-nos “EU NÃO CONHECIA ESSA DOENÇA, MAS É A PIOR DOENÇA QUE JÁ VI NA VIDA”. Doença de nome estranho, já há muito aprendida por aquelas duas mulheres simplórias: Alzheimer. A esposa olhou-nos com uns olhos muito vivos e marejados:
- Tô com meus olhos que quase não enxergo mais de tanto chorar – disse-nos, entregando-se às lágrimas.
Porém, mais surpreendente ainda foi ver que ele, o paciente, diagnosticado com “o alemão” (como dizem popularmente sobre a Doença de Alzheimer) estava, sim, percebendo algumas de nossas ações, chegando a interagir em alguns breves momentos e julgar em outros.
- Doutor ... vou lhe dizer uma coisa ... o senhor esqueceu ... – balbuciavam aqueles lábios já riscados pelas linhas do tempo - ... o senhor esqueceu a parte de olhar.
Ele realmente estaria reclamando do médico que, mesmo dizendo “pode falar, seu Fulano, estou escutando”, continuava escrevendo, sem olhar para ele? Ademais, o senhorzinho falador continuou:
- A gente tem prazer ... de ver assim, 4 ... 5, 6 doutores ... dando duro num serviço ... desse aqui.
Não sei se me surpreendi mais com a situação dos familiares, já calejados dos dias e noites tentando dar os remédios, colocar para dormir; ou foi com o olhar de filha que reconhece o pai, ainda que por detrás do Alzheimer; ou se foi com aqueles rompantes de clareza, como se se lembrasse da lucidez encoberta pelos dez anos de doença. Não sei.
E, depois, o senhor continuou a nos contar dos cavalos do seu tempo de menino e a pegar pequenos objetos imaginários que teimavam em cair no chão.


sábado, 3 de março de 2012

Diagnóstico difícil

Imagem retirada de grande-distracao.blogspot.com


Cheguei esbaforida da faculdade, cumprimentei-a e perguntei como estava. Ela disse que tudo bem, que tinha feito ontem mesmo o teste ergométrico (teste em que o paciente caminha em uma esteira enquanto são acompanhados alguns de seus parâmetros). O médico tinha dito que estava tudo bem:
- Eu só gostaria de saber o que que é “sugestivo de isquemia do miocárdio” que deu no meu exame.
“Isquemia do miocárdio”? No pensamento, como um grito ensurdecedor, aquelas palavras fechavam o diagnóstico: ela estava infartando no momento do exame! Como dizer que, apesar de o médico ter dito que estava tudo bem, ela estava com algumas porções do coração morrendo? Lembrei do seu filho, primeiramente. EU NÃO PODERIA FAZER AQUILO, AINDA NÃO ESTAVA PREPARADA PARA DAR ESSE DIAGNÓSTICO, E PARA ALGUÉM TÃO PRÓXIMO. Pedi-lhe que fosse pegar o exame e usei esse tempo como refúgio. Em minha cabeça, centenas de sentimentos choviam e lavavam a minha racionalidade. Como dizer?
Entregou-me os papéis com suas mãozinhas delicadas, dizendo que ainda estava com os braços meio doídos do exame. Abri e comecei a lê-lo:
CONCLUSÃO: não apresenta alterações no seguimento S-T    sugestivos de isquemia do miocárdio
- Não, aqui tem “não apresenta alteração”.
- Mas e essa parada antes do sugestivo? Não é outra frase, não? – falou apontando para a distância proporcionalmente grande entre “S-T” e “sugestivos”.
Não conseguiria descrever o alívio e felicidade que me deu em saber que, na verdade, as alterações sugestivas de isquemia NÃO estavam no exame. Agora, contando-lhe isso, percebi o sentido em se reforçar tanto a importância de uma boa escrita: uma vírgula pode mesmo mudar muita coisa!