domingo, 4 de março de 2012

Em um mundo só seu

Imagem retirada de osconselheiros.com

Demência. Não conhecia a face dessa doença até aquele dia. Ou melhor. Conhecia em grau leve ou em livro, o que nunca é igual a deparar quem sofre. No consultório apertado, seis estudantes esperavam ansiosos seu primeiro atendimento, quando entrou aquela família. Um homem, bem idoso, caminhava com alguma dificuldade, como se houvesse esquecido que, depois de por o pé direito à frente precisava trazer o esquerdo em seguida, para andar. A filha trazia no rosto a aflição de quem passou algumas noites em claro. A esposa trazia no rosto a tristeza.
No desenrolar da consulta, histórias surpreendentes eram narradas por aquelas senhoras. Histórias de alguém que teima para vestir-se, que esquece como engolir a sopa, que não pode mais estar sozinho em casa. Visivelmente alterada, a esposa disse-nos “EU NÃO CONHECIA ESSA DOENÇA, MAS É A PIOR DOENÇA QUE JÁ VI NA VIDA”. Doença de nome estranho, já há muito aprendida por aquelas duas mulheres simplórias: Alzheimer. A esposa olhou-nos com uns olhos muito vivos e marejados:
- Tô com meus olhos que quase não enxergo mais de tanto chorar – disse-nos, entregando-se às lágrimas.
Porém, mais surpreendente ainda foi ver que ele, o paciente, diagnosticado com “o alemão” (como dizem popularmente sobre a Doença de Alzheimer) estava, sim, percebendo algumas de nossas ações, chegando a interagir em alguns breves momentos e julgar em outros.
- Doutor ... vou lhe dizer uma coisa ... o senhor esqueceu ... – balbuciavam aqueles lábios já riscados pelas linhas do tempo - ... o senhor esqueceu a parte de olhar.
Ele realmente estaria reclamando do médico que, mesmo dizendo “pode falar, seu Fulano, estou escutando”, continuava escrevendo, sem olhar para ele? Ademais, o senhorzinho falador continuou:
- A gente tem prazer ... de ver assim, 4 ... 5, 6 doutores ... dando duro num serviço ... desse aqui.
Não sei se me surpreendi mais com a situação dos familiares, já calejados dos dias e noites tentando dar os remédios, colocar para dormir; ou foi com o olhar de filha que reconhece o pai, ainda que por detrás do Alzheimer; ou se foi com aqueles rompantes de clareza, como se se lembrasse da lucidez encoberta pelos dez anos de doença. Não sei.
E, depois, o senhor continuou a nos contar dos cavalos do seu tempo de menino e a pegar pequenos objetos imaginários que teimavam em cair no chão.


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