quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Com dor, Sem pai

Imagem retirada de leianoticias.com.br
Seria a quarta vez na semana que eu repetiria as mesmas palavras aos visitantes daquele senhor: "Ele permanece estável, mas se tem que considerar a irreversibilidade do seu quadro clínico", etc, etc. Foi requerida a minha presença para as mesmas explicações, mas eu ainda não havia visto aquela que o visitava. Era uma senhora de quase cinquenta anos e que olhava atentamente o monitor marcando a pressão e a frequência cardíaca do paciente. Seu pai. Ele, com um tubo entrando pela boca e tantos outros dispositivos sobre o seu leito, permanecia assim, impassível, desacordado, como esteve desde o começo da semana.
A senhora me olhou com aquele olhar que eu já me acostumei, o olhar de quem questiona se deve mesmo conversar com "essa criança" sobre coisas tão sérias, afinal era sobre um ente querido que ela queria conversar. E eu, a "criança", sigo sempre o mesmo ritual de preparação: dou um claro e sonoro cumprimento, peço licença para pegar o prontuário e começo a falar com toda a segurança que consigo empregar nas palavras. Meras palavras. Não eram estas que ela queria escutar! Não queria saber realmente se ele usava essa ou aquela medicação, não importava se essa ou aquela medida foram tomadas. A ela só importavam duas coisa...
Primeiro, em cuidados paliativos (QUANDO A IRREVERSIBILIDADE DA DOENÇA DESAFIA OS MÉDICOS A ENFRENTAR SEU MEDO DE NÃO PODER CURAR), nós devemos deixar claro que não estamos desistindo do paciente. Assim, disse a ela que tudo o que estava ao nosso alcance em paliação seria feito, que estávamos oferecendo o máximo de conforto possível ao paciente. E sim, essa era uma das suas preocupações.
A segunda preocupação daquela mulher me tomou de cheio, como uma lufada forte de vento quente que vinha não sei de onde, que me fazia corar (eu tenho certeza) e que me devolvia um pouco de vida naquele ambiente em que os paciente não falavam conosco - impedidos pelos tubos que lhes cruzavam a garganta. A senhora de quase cinquenta anos esperou um pouco, observou mais uma vez o monitor, olhou mais uma vez para mim. Seus olhos não mais questionavam se ela teria de conversar com "essa criança", seus olhos seguravam lágrimas presas que queriam muito escorrer e se misturar ao sal da pele. E então, o vento que veio, como num repente, entrou pelo meu ouvido dizendo:
- Nesse domingo é o dia dos pais, não é? - e olhou seu pai mais uma vez, e fungou, e enxugou a primeira lágrima - Será que eu posso trazer um presente para ele?

...

E na segunda-feira, quando eu voltei para dar início aos meus trabalhos, o estetoscópio ficou ainda um tempo no ar esperando para auscultar os batimentos daquele pai, meus olhos fixos nas mensagens de amor que os familiares trouxeram para ele, mensagens grudadas no mesmo monitor que mostrava a pressão e a frequência cardíaca.