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domingo, 16 de agosto de 2015

"Sine cera"

Imagem retirada de galeriadearte.arteblog.com.br

Havia uma movimentação estranha na porta do consultório. Era habitual que, no atendimento do posto de saúde, sempre houvesse muitos risos e falatório do lado de fora, mas naquela manhã estavam muito intensos. Quando abri a porta do consultório e anunciei o nome do próximo paciente, uma figura baixinha, algo encurvada, com a expressão de quem não estava para brincadeiras gritou em alto e bom som "Ave Maria, finalmente me chamou! Deus me livre, como é que a gente espera tanto pra ser atendida, minha filha? Sou uma idosa, tenho pressão alta e diabetes, sabia? Já 'tava' passando mal!". Eu, que venho treinando o meu melhor sorriso para todas as ocasiões em que os pacientes nos veem com essas, ajudei a senhora a entrar ano consultório com o sorriso no rosto e sem dizer palavra. AFINAL, DEFINITIVAMENTE NÃO ERA A PRIMEIRA VEZ QUE LIDAVA COM UMA SITUAÇÃO ASSIM.

Ela começou então a falar dos remédios que tomava e das dores que sentia. Doía aqui e doía ali. Aparentemente estava começando uma "virose" e, depois de perguntar sobre alguns "sinais de alarme", levantei e avisei que iria examiná-la. A paciente, que já não estava tão emburrada e falava alegremente dos netos pequeninos, continuou falando quando eu lhe disse "Vou examinar seu coração, Dona Fulana". Rapidamente coloquei o estetoscópio em posição e fui ajustando o aparelho no tórax dela, sobre o foco aórtico (é por onde geralmente inicio a ausculta, localiza-se do lado direito do tórax). Ela subitamente parou de falar, me olhou como quem repreende um neto e disse:

- Não, minha filha, o coração fica do lado esquerdo do peito!

°°°

OS PACIENTES PODEM ALGUMAS VEZES NÃO ENTENDER O QUE ESTAMS FAZENDO, E ESSA INCERTEZA ASSUSTA. Como pode ser examinada por uma médica que nem sabe que lado fica o coração? Eu expliquei àquela senhora que a gente escutava um monte de pontos no tórax pra saber se o coração estava bem, inclusive "o lado direito". Mas isso me fez lembrar das centenas de vezes que fiz esse gesto e que o paciente quis perguntar a mesma coisa e não o fez. A idosa usou da permissão que o passar dos anos nos dá para falar, falar o que a sociedade nos tolhe quando somos mais jovens. Achei bonita a sinceridade. Acho que nos engrandece um pouco ser, por vezes, confrontados. Essa é a arte de lidar com pessoas.
 
p.s.: Diz que a palavra "sincero" teve origem na Roma Antiga ("sine cera") quando, na fabricação de estátuas de mármore, os escultores desonestos cobriam as imperfeições com cera. Assim, aqueles que eram considerados honestos, não usavam deste artifício, fazendo esculturas "sem cera".

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Sorrisos e momentos na tela

Imagem retirada de vampir.com.br
A sinfonia do violino atinge de cheio o silêncio que estava no meu quarto fazendo-me repetir, ainda que eu não quisesse, o refrão enjoativo do Roberto Carlos. "Como é grande o meu amor por você". Não bastasse a aversão que naturalmente essa música me causava, veio em mim a lembrança de uma manhã que eu gostaria de esquecer. E como são engraçadas as lembranças, são como crianças teimosas pedindo doce às mães - você não pode ignorá-las. Então essa criança começou a espernear dentro de mim, não me deixando esquecer a repulsa que o refrão me causava.
Era dia de visita domiciliar, então havíamos saído bem cedo para ver os pacientes. Geralmente os pacientes do programa de visita são os mais complicados, alguns incapacitados de ir ao posto por diversas questões de saúde. Naquele dia, eu já estava sobrecarregada da visita anterior em que uma paciente com problemas mentais encontrava-se em uma situação precária. O sol e o calor nos castigava enquanto esperávamos que viessem abrir a porta. UM HOMEM ABRIU-A E NOS OLHOU A TODOS COM UM OLHAR IMPACIENTE, QUANDO A MÉDICA ANUNCIOU A QUE VIEMOS.
- Viemos conversar com o senhor, Seu Fulano, podemos entrar?
Ele esperou ainda alguns segundo, que me pareceram uma eternidade naquele sol fustigante. Afastou-se e permitiu que entrássemos. Perguntamos da sua saúde e as respostas vinham lentas, como se o tempo se houvesse dilatado e tudo passasse devagar. Não havia cadeira para todos e, a sala pequena, era preenchida na metade pela viva luz do sol que destoava da tristeza que o semblante do homem carregava. Ele nos disse, por fim, que nada estava bem. Havia perdido seu filho a poucos dias (três? cinco?) e nos mostrou a homenagem registrada em seu corpo que fizera para ele - apontando para o rosto bonito tatuado em seu corpo, dizia que ele não era ladrão, que era "moço bom", trabalhador. DISSE QUE ESTAVA MEDICADO PORQUE NÃO ESTAVA SUPORTANDO A DOR  DE TÊ-LO PERDIDO E DISSE QUE A SAUDADE ERA GRANDE. De repente, como se lhe houvesse soprado no ouvido, levantou rapidamente e perguntou-nos se queríamos saber como ele passava aquelas horas em que ficava sozinho, relembrando o filho. Então colocou um vídeo para assistirmos. Desde o início, eu sentira que aquele vídeo não podia fazer-lhe bem, mas quando o violino harmonioso introduziu a música como que uma fina lança me percorreu a espinha. "Como é grande o meu amor por você" dizia o verso que fora repetido mais que vinte vezes, uma música que começava e terminava, começava e terminava, e as fotos que traziam sorrisos e momentos que não voltariam. Pus-me entre a porta e o televisor para não ver as imagens, mas a música ainda vibrava e vibrava dentro de mim, reavivando a dor de um pai que perdeu seu filho no auge da vida. E OS MINUTOS INFINDOS DE SOL NAS COSTAS, PERNAS DOENDO, SEDE, CALOR SOB O JALECO SE SOMAVAM AOS ROMPANTES DO CHORO CONVULSIVO DAQUELE PAI. Lágrimas estavam correndo tímidas pelos olhos dos muitos expectadores, enxugando-as rapidamente, secando-as na calça discretamente. E o pai que soluçava, soluçava como se ritmasse "Como é grande o meu amor por você"...

quinta-feira, 15 de março de 2012

Um caso de amor

Imagem retirada de http://portal.saude.gov.br
"DOI DEMAIS. ESQUECER DOI DEMAIS"
"E não é que doi mesmo?", pensei e imaginei como eu reagiria em uma situação dessas...
***
Um homem feito (como se diz popularmente), quase às lágrimas, contava a sua trajetória para a gente. Dizia do tempo em que passeara por diversos locais e nos fazia inveja com a sua memória de computador.
- E quando foi que o senhor fez isso, Seu Fulano?
- Foi no dia 19 de novembro de 1958 - falava assim, como se falasse do que comeu naquela manhã.
No decorrer da consulta, o seu principal problema estava exposto. A separação de sua mulher o corroia por dentro e, saudável que sempre foi, estava agora triste, com o choro fácil e tomando mais medicações.
Em um dado momento, ele disse sobre a separação:
- A gente ia fazer 60 anos de casados, mas eu considero mais porque eu conhecia ela antes... Falava com ela de manhã, antes de sair pro trabalho; à tarde, quando voltava para almoçar; e quando voltava à noite... EU VIVI QUASE A MINHA VIDA TODA AO LADO DELA. É muito sofrimento.
Nesses instantes, o seu olhar se perdia numa vastidão de cenas que decerto passeavam em sua mente, em uma valsa constante e ensurdecedora. Ele havia se desfeito de muita coisa para esquecê-la. Doou os bichos de estimação e o primeiro presente que comprou para ela. Mudou a rotina. Pediu ajuda do filho. Mas parecia tratar-se de uma doença da qual a Medicina ainda não conseguiu medicar: a saudade. Aquela saudade que doi fininho no coração e não nos deixa agir. Aquela que vem, se instala e dita quais serão as nossas ações, os nossos pensamentos e até os nossos sonhos. A saudades que não nos deixa dormir...
- Como está o sono, Seu Fulano? Tá dormindo direitinho?
- Não, tô não. Eu deito na cama e fico vendo TV. Dai, quando o sono vem eu me ajeito na cama, mas não consigo dormir.
Tudo isso depois que ela saiu de casa. Falou da desilusão, que estava se sentindo abandonado por quem mais queria bem. E, lá pelas tantas, disse uma verdade que nos mostra o quanto o nosso egoísmo nos deixa doentes e que me permitiu entender muito dele, de mim e de tantas outras pessoas...:
 "A contrariedade dá um mal-estar muito grande na gente"
E como o amor doi... como doi!

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Homem Vulnerável

Imagem retirada de foz9.wordpress.com

Entramos na enfermaria e um odor desagradável irritou-me as narinas. O café-da-manhã embrulhava no meu estômago e parecia fazer toc-toc em uma porta, pedindo para sair. Concentrei-me na cena: dois homens deitados nos leitos da Urologia, sem acompanhantes, pareciam recém-acordados de uma noite bem dormida. O que estava mais próximo recebeu a todos com um sorriso aberto. O doutor que o acompanhava perguntou cordialmente como ele estava e se já estava ansioso com  a cirurgia que seria dali a pouco. Na enfermaria, um outro paciente observava a movimentação. O médico solicitou que ele saísse por alguns instantes, ao que ele concordou prontamente, levantando-se e fechando a porta atrás de si. Achei estranha a atitude, já que, de rotina, atendíamos a todos os pacientes perante os demais, sem cerimônias.
O doutor perguntou-lhe se sentia alguma dor e se poderia mostrar a região do tumor para os alunos.
- Vocês sabem o que é tumor de Buschke-Loewenstein?
Minha colega e eu nos entreolhamos. Ela disse que já ouviu este epônimo, porém não se recordava do que se tratava. O paciente baixou o short e mostrou o grande tumor nas partes íntimas, mantendo ainda o mesmo sorriso com que nos recepcionou. Disse que não tinha vergonha, afinal estávamos todos lá para aprender e em breve estaríamos salvando vidas...
"Salvando vidas", ESSAS PALAVRAS AINDA ECOAM AQUI NA MINHA CABEÇA, GIRANDO E GIRANDO COMO SE PROCURASSEM O SENTIDO EM TUDO ISSO. Um homem exposto, vulnerável, desprendido de seus pudores para salvar sua vida e nos ensinar: ensinar que não levamos nada da vida, a não ser o que de bom fazemos aos outros, o que nos faz ter a certeza de que nossa vida não é desprovida de sentido.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Nada de massas!

Imagem retirada de cliquebeleza.net
Sentada na porta de um consultório, fiquei esperando o horário de "trabalhar". Uma porção de carrinhos róseos ou azuis passavam para lá e para cá. Gritinhos e risinhos eram ouvidos a todo momento. Quando me dei conta, vários bebês e suas mães estavam por todos os lados.
É engraçado como cada mãe quer, precisa falar de suas experiências, do que viveu com aquele pequeno ser que deu certo, do que aprendeu com outras pessoas. Ficando ali, ouvi - sem ser convidada - de tudo um pouco. Em dado momento, uma delas estava se vangloriando por sua filha comer muito bem e dormir melhor ainda. Ela disse, então:
- Ah! Aveia ela adora. Quando ela termina, até pedir mais, ela pede.
Olhei para aquela pequenina, rosadinha e fortinha, e lembrei-me das horas e horas na aula de pediatria e das centenas de vezes que ouvi que criança com menos de 6 meses não deve tomar outra coisa que não leite materno e que, após isso, alimentos leves devem ser introduzidos na alimentação. Nada de massas! Lembro ainda das centenas de artigos publicados, respaldando as nossas recomendações. Nada de massas! Então me pergunto como anda a nossa comunicação com as mães, e mais: ATÉ QUE PONTO TEMOS PROPRIEDADE PARA DAR CERTAS RECOMENDAÇÕES? Geralmente, quando converso com as puérperas, elas me olham "de lado", desconfiadas. "Como essa 'criança' quer me dizer o que fazer", devem pensar. E assim seguiram as conversa, uma após outra, "desrespeitando" as nossas ordem, criando bebês fortes e rosados, dando continuidade ao curso da vida.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Toda mulher é igual

Imagem retirada de donaoncinha.com.br
Levantou a pequena blusa e mostrou a barriguinha roliça. "Cadê a manchinha? É essa aqui?". A menina faceira sorriu e disse que era essa, mas tinha outra. A mãe disse que ela mostrasse a mancha maior e a pequenina se virou, deixando a mostra um branco que parecia um pedaço de uma aquarela retirada das mão de um pintor. A mãe nos olhou interrogativa. Analisamos, friccionamos, colocamos luz. Vimos e revimos aquela pequena mácula no corpinho da criança. Ela já havia sido avaliada por uma dermatologista que lhe prescreveu uma medicação, mas não orientou a mãe, não lhe disse do que tratava e tão pouco dispendeu ao menos 2 minutos no atendimento. Perguntou à mãe se ela poderia pagar uma medicação de 70 reais. E depois perguntou se ela poderia pagar uma de 90 reais.
- POXA, DOUTORA. ELA É MINHA FILHA, EU TERIA QUE DAR UM JEITO. FICAR PERGUNTANDO SE EU POSSO PAGAR ISSO OU AQUILO EU DARIA UM JEITO!!!
Mas o que lhe preocupava deveras era o fato de a "doença" da filha ser para sempre, de ela ficar diferente da idealização que as mãe fazem: o filho perfeito, sem manchas, com todos os 20 dedos, educado, esforçado e que todos adoram! Quando penso nisso, lembro do que minha mãe sempre me dizia quando eu ficava horas na frente do espelho, inumerando as dezenas de defeitos que eu encontrava: "Não diga isso, você é perfeita. Você não sabe o quanto eu rezei para que Deus fizesse você assim". Aquilo estava longe de me consolar na época, e hoje, em frente àquela mãe, tive a certeza que a sina de muitas mãe é se desgostar em ouvir as reclamações estéticas de suas filhas... e com aquela mulher não seria diferente, independentemente de ficar apenas naquela manchinha ou não.
Como o provável diagnóstico (uma doença estética, mas que poderia evoluir com manchas em todo o corpo da criança), a mãe se mostrou bastante triste. "Deus que me perdoe, mas preferia até que fosse essa tal de hanseníase, pelo menos tem cura". Dissemos que ela também poderia usar medicações para estabilizar a doença, sem falar na possibilidade de a doença não evoluir por si só, mas eu sabia, independente do desfecho, que aquela mãe passaria pelo mesmo problema de tantas outras mães: convencer sua filha de que ela é linda, dentro da perfeição que é o ser vivo.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Quanta dor ela aguenta?

Imagem retirada de: bbel.uol.com.br
Quanto dói uma pancada? E a vergonha de tê-la aguentado calada? Qual a dor de estar acompanhada por um homem que não lhe respeita, que lhe trata com desprezo e que lhe tortura? Quanta dor aguenta uma mulher?


Entrou acompanhada da irmã. Parecia envergonhada por ter que responder mais uma vez à fatídica pergunta: como foi que aconteceu isso com a senhora? Havia pouco mais de cinco pessoas na sala, excetuando-se paciente e acompanhante, e, antes que aquela respondesse, a acompanhante antecipou-se: FOI O MARIDO DELA, EU JÁ DISSE 'PRA' ELA DAR PARTE DELE, MAS ELA NÃO DÁ! Ao que a paciente respondeu, "Ai, 'Fulana', tá bom, para com isso!".
Ela reclamava de dores na cabeça (onde ele havia esmurrado) e tinha cortes próximo aos olhos. A acompanhante havia dito que não era a primeira vez que isso havia acontecido e que ela "só podia era gostar de apanhar" porque não tomara nenhuma atitude!
O médico começou a atendê-la ao passo que lhe dava lições de moral, do tipo "Largue esse homem" ou ainda "Denuncie na polícia"...
Eu fiquei ali, assistindo ao procedimento e imaginando o que se passava com aquela mulher. E me veio a mente histórias que eu conhecia de mulheres que eram diariamente subjugadas e não tinham opção de simplesmente "deixar seus maridos". Não é fácil! Não é assim como a mídia às vezes pinta, jogar tudo para o alto e seguir a vida. MAS O PRIMEIRO PASSO É NECESSÁRIO, E ESTE É CERTAMENTE O MAIS DIFÍCIL! Das mulheres que eu acompanhei nos plantões, todas tinham as mesmas características: vergonha do que passavam e dificuldade de tomar alguma atitude. Fica claro, então, que não se trata apenas de uma questão de escolha, mas também de ter como se sustentar, de ter quem lhe apóie nessa decisão, de saber que há vida diferente daquela realidade. As mulheres que apanham (ou que são submetidas a outras humilhações) não permanecem nessa situação por livre escolha, mas porque sentem-se fragilizadas para tomar um posicionamento. E é doloroso olhá-las naquela situação!

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Não joguem a primeira pedra! Aliás, pedra nenhuma!

Imagem retirada de lealdadefeminina.blogspot.com
Interessante como estudar na área da saúde tem me permitido, cada vez mais, perceber e entender algumas situações humanas em que antes eu nem pensava. Como entender a vergonha que uma mãe tem da filha?
Estávamos em mais um atendimento quando entrou aquela dupla: mãe e filha, esta bem cuidada e aparentemente saudável e aquela, arrumada e maquiada. Quando começou a contar sua história, olhei para a pequenina e procurei algum sinal do que ela narrara: a criança havia nascido com o sistema digestivo incompleto, sendo necessário fazer um desvio do trajeto natural das fezes, que passariam a sair por um "buraquinho" feito por cirurgia na "barriga". A cirurgia já havia sido feita desde que ela nascera.
A criança nos olhava, estava calma no colo da mãe. Perguntei sobre a idade dela e já estava em idade escolar. AO PERGUNTAR O PORQUÊ DE NÃO LEVAR A CRIANÇA À ESCOLA, A MÃE RESPONDEU QUE NÃO SABIA COMO CONTAR AQUILO ÀS PESSOAS NA ESCOLA. Nossa! Passou-me pela cabeça tudo o que os nossos responsáveis fazem para nos proteger, mas proteger de quê? Do que as pessoas vão dizer? Do que você vai ter que enfrentar? Proteger de quê?!
Aquela mulher estava preocupada e envergonhada. Como ela faria para enfrentar um sociedade que não se preocupa apenas com a sua vida, mas se interessa pelos problemas dos outros, repassa-os, critica-os. Imaginei os pensamentos sofríveis que aquela mãe tinha ao pensar em expor a sua filha daquela maneira, avisar para professores e diretor do problema dela e compartilhar de sua realidade com outras pessoas. A mãe ainda disse que morava em uma cidade pequena e que tinha inclusive pessoas na família que não sabia disto!
Não cabe a ninguém criticar a atitude da mãe, mas eu tentei entender os motivos que lhe fizeram tomar tal atitude. Aconselhei-a a pensar mais sobre colocar sua filha na escola, para que ela não ficasse tão atrasada nos estudos, porém reconheço que não é somente um conselho que vai mudar a vida daquela mulher. EM UMA SOCIEDADE EM QUE NÃO SE PERMITE SER "DIFERENTE", NÃO É NADA FÁCIL QUE OS "DIFERENTES" SE ACEITEM COMO SÃO!

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O que procuro

Imagem retirada de gifsdaprin.kit.net
A senhora entrou no consultório cheia de dores.

- O que trouxe a senhora aqui?
- Doutora, eu tô com dor aqui no ombro, nesse dedo, nessa panturrilha, no punho direito e cotovelo esquerdo. Tenho dor de cabeça, tenho mais isso e mais aquilo...

Colhida a história da paciente e realizado o exame físico por duas internas e eu, ficamos aguardando a doutora para discutir o caso. Um pouco mais de conversa e a paciente começou a contar as coisas que estavam agravando seu estado de saúde, a situação com o marido, a baixa auto-estima... UMA SÉRIE DE OUTROS FATORES QUE PASSAM DESPERCEBIDOS QUANDO FAZEMOS UMA CONSULTA RÁPIDA E SEM VONTADE.
De nada adiantaria prescrever os remédios sem as recomendações que se seguiriam (emagreça, coma comidas saudáveis, faça exercício), e menos ainda se não tivéssemos tido a sorte de nos aprofundar na história da doença, que também é aquilo que se sente. O BELO DE SE TRABALHAR NA ÁREA DA SAÚDE É ENTENDER QUE O SER HUMANO É MAIS DO QUE AQUILO QUE NOS FALA, MAS É TAMBÉM O QUE SENTE, O QUE DEMONSTRA, O QUE ESCONDE! Mais do que dores no corpo, ela precisava desabafar a situação de humilhação que estava passando, sentindo-se feia e não-amada.
Eu não soube o que dizer. A interna, com maestria, deu-lhe as recomendações necessárias e falou um pouco do auto-cuidado e do amor-próprio. Ali, naquele ambiente pouco acolhedor, a paciente pode chorar e receber a atenção que precisava. Ali foi feita a medicina humanizada que eu tenho procurado.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Série Sentimento: Pacientes Ensinam a Preocupação

Imagem retirada do blog maepreocupada.blogspot.com
Estava dando uma olhadinha em uns blogs na rede, e deparei um que falava especificamente sobre um sentimento que nos acomapanha diariamente... a preocupação. Preocupar-se é realmente ocupar previamente seu tempo com pensamentos e cuidados de algo que pode acontecer. Em uma frase de Haddon W. Robinson diz-se: "O que te preocupa, te domina"... isso pode enlouquecer alguém. Mas há vezes que é inevitável, daí vem o sentido de eu mencionar o blog maepreocupada.blogspot.com/ : lembrou-me a preocupação de uma mãe naquilo que observo nos hospitais...

Houve um certo "reboliço" quando aquele jovem entrou na sala. Havia sido espancado por assaltantes que levaram algumas roupas dele (as que ele trazia em uma sacola e no corpo!) e o rapaz foi encontrado inconsciente. Ele estava muito apreensivo, mas, naquele momento, já falava conosco o suficiente para chamar por sua mãe.
Pouco tempo depois, aproximou-se aquela senhora. Mulher forte, já madura, entrou trazendo em seu semblante toda uma preocupação estampada. COMO DESCREVER OS TRAÇOS DO ROSTO DE UMA MÃE QUE VÊ SEU FILHO ESPANCADO IMPUNEMENTE?! Se pudessem ser resumidos a uma palavra, talvez eu escolhesse "desespero".
Feito o atendimento inicial, deixamos que mãe e filho conversassem. Ela queria saber se ele havia reagido ao que ouviu um: "mãe, eles levaram a roupa novinha, que eu acabei de ganhar!". Aquilo me surpreendeu e provavelmente à mãe também. Visivelmente incrédula com o que ele disse, ela falou que ele não deveria ligar para isso, era apenas bem material; que agradecesse, contudo, por estar vivo e sendo atendido...
Mães: estas são o que melhor traduzem o termo preocupação. Em outros plantões, presenciei também essa intensidade de sentimento (como no texto O Grande Amor) e deixo, por fim, uma reflexão aos profissionais de saúde, para que a gente aprenda a lidar com esse forte sentimento, que nos mortifica (a todos) aos poucos:
"Normalmente os homens preocupam-se mais com aquilo que não podem ver que com aquilo que podem" Júlio César, Imperador Romano

terça-feira, 12 de julho de 2011

Série Sentimentos: Pacientes Ensinam a gratidão

Imagem: regionalilheus.blogspot.com
Analisando as dezenas de sentimentos que podemos aprender em nossa vida, a gratidão é certamente o mais charmoso. Charmoso porque não tem os arroubos a que a paixão nos submete, mas não é tão passivo quanto a aceitação. SER GRATO É RECONHECER ALGO DE BOM QUE LHE FOI FEITO E NÃO POSSUIR NADA MAIS QUE PALAVRAS E GESTOS PARA PAGAR AQUELE ATO. Gratidão foi o que um dia me foi ensinado pelos pacientes...
A senhora já estava sendo atendida. Claramente desconfortável naquela maca, e sentindo dores, ela procurava algo para se distrair: começou a conversar. Como eu não estava fazendo o procedimento, pude lhe dar a atenção de que precisava para ignorar que estavam mexendo em seus ferimentos. Ela começou então a contar uma história...
Seu filho, pouco tempo após nascer, ficara doente, mas ninguém conseguia dizer o que ele tinha. Várias visitas em hospitais e vários dias se passaram, e nada de diagnosticar, muito menos dizer de que ele padecia. Seu estado de saúde piorava e ela estava desesperada com a morte iminente de sua criança. Foi quando, em mais uma visita aos médicos, um estudante (interno) olhou com outros olhos para aquele caso. Ele sugeriu que fosse solicitada um tomografia, ao que se diagnosticou abscesso cerebral.
Ela contou que ainda hoje sofre levando seu filho para se tratar, pois ainda não está completamente curado. Mas disse também que será eternamente grata àquele que olhou para seu problema e mostrou-lhe um caminho a ser seguido. E completou dizendo que muitas vezes as pessoas não querem ser atendidas por médicos novinhos (se referindo à nós, estudantes), porém ela sabia que foi um desses novinhos que a ajudou.
AO TERMINAR O PROCEDIMENTO, AGRADECEU BASTANTE E EU FIQUEI COM A SENSAÇÃO DE QUE, AINDA COMO ESTUDANTES, PODEMOS SEMPRE OFERECER ALGO A QUEM ESTÁ PRECISANDO.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Série Sentimentos: Pacientes Ensinam a Raiva

Imagem retirada de: jhonatasricardo.wordpress.com
Sentimentos nobres ou não, estamos todos sujeitos às nossas emoções... Quem nunca sentiu raiva, que atire a primeira mentira!
Plantão bastante movimentado, não parava de chegar pacientes: quedas em casa, quedas de moto, tiros, dores abdominais, espancamentos... Paciente após pacientes, todos igualmente necessitando de ajuda. Assim, como é regra em todos os hospitais de emergência, são atendidos aqueles que apresentam potencial risco de morte antes de quaisquer outros. Partindo desse princípios, vários pacientes graves foram sendo vistos, medicados e encaminhados; e havia um casal que aguardava o atendimento.
Lá pelas tantas, quando mais um paciente bastante debilitado chegara e passara na frente do casal, a mulher ficara bastante irritada. É interessante como cada pessoa se expressa à sua maneira. Ela começou a reclamar que não aceitava esse absurdo, que várias pessoas já haviam passado na frente de seu marido, que isso, que aquilo. A médica começou a lhe explicar os procedimentos na emergência, que aquilo era uma regra de todos os hospitais. A acompanhante, por sua vez, disse que só naquela "porcaria" era que isso ocorria e completou: "MAL-EDUCADA É TU, 'BUNITINHA'".
Logicamente, profissionais devem evitar ao máximo o confronto com os pacientes; porém os pacientes precisam também entender que, primeiro, temos limites e, segundo, também trabalhamos sob pressão. Devemos entender que os pacientes e seus acompanhantes estão temerosos como o que pode acontecer de suas vidas, mas nós também temos nossas preocupações. Aquela médica simplesmente se retirou e solicitou que um colega a substituísse. Achei muito legal a atitude dela. Imagine se, em vez disso, ela revidasse!
Os pacientes nos ensinam o amor, mas também nos ensinam com a sua raiva!

terça-feira, 28 de junho de 2011

Série Sentimentos: Pacientes Ensinam o Amor


Como os propósitos centrais desse blog é relatar o que tenho aprendido com os pacientes e repassar a vocês essas experiências, aqui vai mais um texto das belas coisas que vejo em meio a uma "saúde humana" que está em crise...
O plantão começara cedo. Diferentemente dos demais plantões, este foi durante o dia, então os casos vistos na Emergência são outros. Assim, lá pelas tantas da tarde, entra na sala uma família que trazia uma senhora. Esta apresentava problemas de saúde e estava debilitada. O médico indicou a cirurgia ao passo que emendou dizendo que ERA UMA CIRURGIA DE GRANDE RISCO DE MORTE, SENDO A ÚNICA TERAPIA DISPONÍVEL PARA O CASO.
Essa notícia assim, dada "na lata", sem meias palavras me comoveu não somente pela gravidade da questão, mas principalmente pelas figuras humanas que ali se apresentavam...
Era um casal de meia idade, juntos por quase toda a vida. Ela, acamada e frágil, há tanto tempo com a aliança que esta teimava em sair do dedo (para que ela subisse ao centro cirúrgico era necessário retirar tudo!). Ele, fala leve e amorosa, falava que tudo ia dar certo e lhe acariciava os cabelos. Não sei de suas vidas fora dali, mas aquela simples imagem mostrou-me que OS PACIENTES NOS ENSINAM MUITAS COISAS - OU AS JOGAM EM NOSSAS CARAS, ASSIM, ESCANCARADAMENTE. Estes? Estes me ensinaram o amor, o longo amor que os anos vêm passar.

sábado, 25 de junho de 2011

Não há só o seu mundo

Imagem retirada de http://downloads.open4group.com
Esses dias tive uma aula interessante que, apesar de não ter tido contato com pacientes, me esclareceu algumas verdades que teimo em esquecer.
Era uma aula de campo sobre a História da Medicina e fomos visitar uma famosa instituição da cidade: Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza, completando (em 2011) seus 150 anos. Não chegamos a entrar, mas nos foram discorridas as situações que ocorreram ali durante sua longa história e as riquezas de seus arredores, onde se localiza uma importante praça da cidade - o Passeio Público. Ao passo que o professor contava que a Santa Casa fora construída de frente para o mar (que, como acreditavam, sanaria as impurezas do ambiente levando-as para longe), me peguei refletindo A NOSSA PEQUENEZ ANTE A GRANDEZA QUE É A VIDA. OU MELHOR, AS VIDAS! Assim, ficou-me muito claro naquele instante que tratamos pessoas, e não suas doenças. Sacal? Talvez! Mas nem por isso deixa de ser verdadeiro.
Costumamos, enquanto estudantes e/ou profissionais da saúde, ver nossos locais de trabalho e seus frequentadores como salas desarrumadas e máquinas quebradas, nesta ordem. Esquecemos, porém, que suas vidas não são aquelas doenças e que o que importa não é somente aquele momento. A Santa Casa completa 150 anos e quantas histórias fizeram-na chegar ao que é! Quantas pessoas não olharam por suas janelas, vislumbrando o mar e desejando apenas que aquela fase de doença passasse para cuidar do filho, ralhar o marido, sorrir com os amigos...
SOMOS SERES COMPLETOS, MULTI-FACETADOS. MAS NÃO SOMOS O CENTRO DO UNIVERSO. SOMOS UM PEDAÇO DESTE. Apenas nossa arrogância não nos permite conviver bem com essa verdade!

quarta-feira, 25 de maio de 2011

O grande amor

Imagem retirada de br.olhares.com
Aproveitando que hoje é o Dia da Adoção (25 de maio), esse post vai ser em homenagem a um grande amor, amor entre mãe e filho. Não é necessário que eu diga que há centenas de crianças esperando por essa oportunidade: amar e ser amada. No Ceará, são mais de cinquenta crianças nos lares de adoção.
Ao sair da sala de "pequenas cirurgias", vejo uma senhora que, em seus quase quarenta anos e porte contrito, aguardava a sua vez de ser atendida. Estava junto a uma criança, um menino que não tinha ainda dez anos e estava na maca, de olhos inchados e arroxeados fechados serenamente. Interroguei a senhora sobre o que tinha acontecido àquela criança e, quando começou a falar sobre o atropelamento, irrompeu em um choro convulsivo. Depois de dado o seguimento do caso, fiquei observando aquela senhora: mão sobre mão e o toque delicado no rosto daquele ser frágil, uma mulher chorando a dor do seu filho, o medo de perdê-lo...
Amor maternal é mesmo algo além da nossa compreensão, e não precisa necessariamente ser entre mãe-filho. O amor a que me refiro é este que quer acolher, confortar; é este amor que foge a nossa razão e quaisquer que sejam as explicações, estas são irrelevantes por não conseguir traduzi-lo.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Tem um lugar para mim ainda?

Sunday, de Edward Hopper
Como autora de blog estou mais para "roubadora de histórias". Digo isso porque esta é uma história bela, captada de outrem e repassada com carinho para vocês...

As três gerações estavam reunidas na sala, conversando: avô, mãe e neto. A mãe passava um sermão no senhor idoso, que ele não deveria deixar de tomas os remédios porque o coração dele mais parecia uma metrópole de tantas "pontes" que já foram feitas, que isso, que aquilo...
O senhor, enfadado com o discurso moralista disse "Minha filha, eu já estou tão velho que estou ficando cansado"...
O neto olhou bem rápido para o avó e fez-lhe uma pergunta que ainda hoje ecoa no coração de sua mãe: "Vovô, SEU CORAÇÃO ESTÁ TÃO VELHO QUE NÃO TEM MAIS MEU LUGAR LÁ DENTRO MAIS, NÃO?!"

A doença é uma entidade capaz de mudar bastante aquele que com ela convive, mas não passa despercebida por que lhe rodeia. Essa é uma mensagem de um coração inocente de criança para nós, que desaprendemos as sutilezas das palavras...