Mostrando postagens com marcador Autonomia do Paciente. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Autonomia do Paciente. Mostrar todas as postagens

domingo, 16 de agosto de 2015

"Sine cera"

Imagem retirada de galeriadearte.arteblog.com.br

Havia uma movimentação estranha na porta do consultório. Era habitual que, no atendimento do posto de saúde, sempre houvesse muitos risos e falatório do lado de fora, mas naquela manhã estavam muito intensos. Quando abri a porta do consultório e anunciei o nome do próximo paciente, uma figura baixinha, algo encurvada, com a expressão de quem não estava para brincadeiras gritou em alto e bom som "Ave Maria, finalmente me chamou! Deus me livre, como é que a gente espera tanto pra ser atendida, minha filha? Sou uma idosa, tenho pressão alta e diabetes, sabia? Já 'tava' passando mal!". Eu, que venho treinando o meu melhor sorriso para todas as ocasiões em que os pacientes nos veem com essas, ajudei a senhora a entrar ano consultório com o sorriso no rosto e sem dizer palavra. AFINAL, DEFINITIVAMENTE NÃO ERA A PRIMEIRA VEZ QUE LIDAVA COM UMA SITUAÇÃO ASSIM.

Ela começou então a falar dos remédios que tomava e das dores que sentia. Doía aqui e doía ali. Aparentemente estava começando uma "virose" e, depois de perguntar sobre alguns "sinais de alarme", levantei e avisei que iria examiná-la. A paciente, que já não estava tão emburrada e falava alegremente dos netos pequeninos, continuou falando quando eu lhe disse "Vou examinar seu coração, Dona Fulana". Rapidamente coloquei o estetoscópio em posição e fui ajustando o aparelho no tórax dela, sobre o foco aórtico (é por onde geralmente inicio a ausculta, localiza-se do lado direito do tórax). Ela subitamente parou de falar, me olhou como quem repreende um neto e disse:

- Não, minha filha, o coração fica do lado esquerdo do peito!

°°°

OS PACIENTES PODEM ALGUMAS VEZES NÃO ENTENDER O QUE ESTAMS FAZENDO, E ESSA INCERTEZA ASSUSTA. Como pode ser examinada por uma médica que nem sabe que lado fica o coração? Eu expliquei àquela senhora que a gente escutava um monte de pontos no tórax pra saber se o coração estava bem, inclusive "o lado direito". Mas isso me fez lembrar das centenas de vezes que fiz esse gesto e que o paciente quis perguntar a mesma coisa e não o fez. A idosa usou da permissão que o passar dos anos nos dá para falar, falar o que a sociedade nos tolhe quando somos mais jovens. Achei bonita a sinceridade. Acho que nos engrandece um pouco ser, por vezes, confrontados. Essa é a arte de lidar com pessoas.
 
p.s.: Diz que a palavra "sincero" teve origem na Roma Antiga ("sine cera") quando, na fabricação de estátuas de mármore, os escultores desonestos cobriam as imperfeições com cera. Assim, aqueles que eram considerados honestos, não usavam deste artifício, fazendo esculturas "sem cera".

domingo, 29 de abril de 2012

Vergonha

Imagem retirada de revolucionaria.files.wordpress.com
Entrou como se pedisse licença para existir. Mas não precisava. Quem pedia licença éramos nós, estudantes, compartilhando com aquele senhor a posse da sua doença. Sua filha seguiu com passos mais confiantes. O professor se pronunciou, perguntou-lhe o nome e pediu que se sentasse na maca.
- Seu Fulano, o senhor pode, por favor, tirar a camisa?
Tiritando de frio, o senhor retirou vagarosamente a blusa, os botões teimando em brincar por entre os dedos que sacudiam junto com o corpo. Ele estava envergonhado! E sua vergonha não vinha somente do tom de voz alto e jovial do médico que conflitava com os nossos olhares apreensivos. Não vinha somente do fato de ter corrido a vida assim, hígido e confiante, e, de repente, encontrar-se precisando de ajuda. SUA VERGONHA VINHA TALVEZ DO FATO DE SUA DOENÇA SER TÃO ESTIGMATIZANTE E QUE, PARA CHEGAR ALI NO CONSULTÓRIO, PASSARA ANTES POR DIVERSOS OLHARES CURIOSOS, ÀS VEZES PRECONCEITUOSOS, que viam sua pele toda descamando e não sabia do que se tratava.
Sobre o vermelho intenso de sua pele que queimava, milhares de casquinhas brancas se soltavam. "Eritrodermia!", cortou o silêncio novamente, com seu tom de voz jovial, o professor. A filha olhava com atenção para o médico, esperando talvez a palavra mais ansiada nos consultórios, ambulatórios e hospitais: "cura". Esperou, esperou, esperou... e o médico nos contava de que se tratava aquela manifestação, o que sentia o paciente, quais medicações deveriam ser prescritas.
E, indiferente à espera de sua filha, ao conhecimento vasto do médico e aos olhares curiosos dos alunos, o senhor se calava em toda a simplicidade que a doença pode nos trazer. Calava um silêncio que me gritou aos ouvidos: ele sofria!

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Solidão em uma casa cheia

Imagem retirada de flickr.com
Como não perceber algo que me gritava aos olhos? Um por um, do mesmo jeito, as mesmas características: idosos que vinham para a consulta de rotina, trazendo suas receitas já muito gastas e suas angustiantes histórias de vida. Um ou outro nos trazia um sorriso escancarado de quem "tem quem me cuide" ou de quem "ele próprio pode muito bem se cuidar, obrigado(a)!". OS DEMAIS TINHAM SEMPRE AQUELE ASPECTO DE LÁGRIMA POR ESCORRER ENTRE AS RUGAS, o que me afligia por não ter seguido a antiga recomendação de Alfred Benjamin, em "Entrevista de Ajuda", que recomenda que o bom profissional deve sempre trazer lenços para os pacientes.
Destes, uma senhora me chamou atenção. Já havia atendido-a em outra oportunidade, lembrava inclusive de seu problema de saúde e de que era poliqueixosa (como se diz dos pacientes que nos trazem centenas de problemas de saúde). Perguntei sobre o uso dos medicamentos, ao que ela disse que usava bem direitinho. Após algum tempo de conversa, ficou claro que ela usava direitinho quando lembrava. Não tinha ninguém em sua casa que pudesse ajudá-la nisso, além de que ela mesma afirmava esquecer inclusive de comer, chegando a servir seu almoço e simplesmente voltar na cozinha, lá pela hora do lanche, e encontrá-lo intacto como havia deixado. Falou que seu marido era quem estava cozinhando e que não conseguia comer aquelas coisas verdes que ele colocava no prato. Carne? "Ingüiava" só em mencionar...
Contou-nos ainda dos problemas de insônia e de como seu filho chegava bêbado várias noites, importunando seu sono.
Soubemos que a sua rua era muito perigosa e que ela passava a noite quase toda de vigília, esperando pelo pior da janela de casa, com medo, muito medo.
Quem olha pelas milhares de senhoras e senhores que dedicaram suas vidas aos filhos e que estes lhes abandonam (literalmente ou psicologicamente)? Algumas vezes é tão doloroso atender pessoas que você sabe que poderá fazer pouco por elas. UM REMÉDIO NÃO PODE ORGANIZAR A VIDA FAMILIAR E ISSO É UM TAPA NA NOSSA CARA; É UM "VOCÊ SÓ PODE FAZER ISSO?" QUE NOS ENCHE DE UM VAZIO. Tenho consciência de que uma palavra com essas pessoas pode ser muito gratificante para elas, mas não me parece ser suficiente.
A doutora que nos acompanhava conversou com o agente comunitário da rua dela e pediu que ele ajudasse no controle da medicação, passando pelo menos uma vez por semana na casa dela para contar os comprimidos. Nós, estudantes, fizemos uma tabela e juntamos as medicações, para que ela pudesse lembrar de todas. Uma gota no oceano que espero tê-lo tornado um pouco mais cheio!

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Senhora travessa

Imagem retirada de kdvg.se
Era uma criança. Uma criança larga, com rugas e 66 anos de idade. É engraçado que, nesse momento, IMAGINO AQUELA SENHORA QUANDO CRIANÇA, SUA MÃE BRIGANDO PARA ELA NÃO ANDAR DESCALÇA NO QUINTAL E NÃO COMER CIRIGÜELA QUENTE DO PÉ!
***
A senhora começou a consulta dizendo que se sentia mal. Perguntamos sobre as medicações para diabete e a alimentação: tudo em ordem. Com poderia ter dado 273 a sua glicose, quando o aceitável seria 140?
- O que a senhora comeu hoje?
- Comi duas bananinhas...
Intrigada, comecei a perguntar sobre a sua rotina alimentar. Depois de uma longa explanação de seus hábitos, perguntei se ela gostava de leite. "Sim". E com que frequência ela tomava:
- Ah! Leite eu tomo toda hora! Entre as refeições mesmo! Tem também outra coisa que eu acho que eu exagerei, sabe, "doutora"!? É que ontem eu comi uma manga...
- Mas qual o tamanho da manga?
- Era meio grande, assim - e mostrou uma distância considerável entre as mãos espalmadas.
A enfermeira e eu começamos a rotina de explicar que só a medicação não adiantava, que a dieta seria essencial. ELA DISSE QUE SABIA DE TUDO ISSO, QUE O AÇÚCAR EM EXCESSO LHE FAZIA MAL, QUE O PÃO ERA TRANSFORMADO EM AÇÚCAR EM SEU ORGANISMO...
***
Como fazer nesses casos? Aquela senhora, ciente de sua situação de saúde, conhecedora dos meios de evitar o pior, estava entregue ao maior desafio do ser humano: não provar o proibido. Para não citar a Bíblia, digamos que sempre o inusitado, o perigoso, o proibido tende a nos fascinar, sendo necessário o profissional da saúde repetir algumas vezes as informações já gastas de tanto que são repassadas!
Mas como exigir mudança tão radical de quem era saudável e se viu doente de algo que não se sente, que não se vê, como o diabete?
Então me fica mais uma lição: é necessário mais que compreensão para atender bem um paciente. Precisamos também, como eles, de paciência.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Fiapinhos que se vão!

Imagem retirada de gommo.com.br
Ela entrou no consultório. Cabelo feito, boca pintada, vestido limpo, agitada. Estava visivelmente nervosa e contava-nos o que lhe havia acontecido. Eventos tristes, cenas que se repetiam nas noites em claro. Segurava um terço nas mãos que rodava, rodava. As unhas não estavam pintadas, mas eram bem cuidadas. Nos falava das dores que sentia na alma e na falta de vontade que tinha na vida. FALAVA DA VONTADE DE MATAR E NO DESEJO DE MORRER! Disse o quanto era dependente da medicação para dormir e o que faria para tê-la.
Das doenças que a Medicina trata, as "da alma" são as mais penosas. Penosas porque escondem o que realmente se passa com aquela pessoa e porque é mais difícil para o médico saber como o paciente sofre. Quando uma pessoa nos diz "tenho uma dor na barriga" vários diagnósticos e várias medicações passam nas nossas cabeças, mas quando dói ali dentro da cabeça (e que machuca no coração!) é bem diferente.
Fiquei pensando o que passava aquela mulher que nos dizia não ter mais plano nenhum para o futuro. E no que ela pensou enquanto falávamos que ela devia animar-se, procurar fazer alguma atividade física, conversar com o psicólogo... Talvez ela se risse pensando: eles devem estar brincando; será que não ouviram que eu disse que não tenho planos para o futuro? Ou talvez ela chorasse, e ESSAS LÁGRIMAS ERAM OS FIAPINHOS DE ESPERANÇA QUE ELA DEPOSITOU NA GENTE. "Ingênuos! Palavras não curam dor da alma."

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Não vi sequer seus olhos

Imagem retirada de escrevalolaescreva.blogspot.com
Estávamos todos ansiosos para o que iria acontecer: assistiríamos a nossa primeira consulta ginecológica. Quando viemos ao consultório, estávamos em bando - uma porção de alunos de jaleco branco. A paciente, que aguardava do lado de fora do consultório, viu-nos aproximando.
Ficamos discutindo como o professor sobre os procedimentos e percebemos uma movimentação lá fora. A paciente disse não queria mais fazer o exame e que iria embora. Certamente estava em seu direito e ai vem a grande dúvida que nos persegue a faculdade inteira: precisamos dos pacientes para aprender a ser médicos, mas como fazer quando estes se recusam o atendimento quando estamos?
O professor e os funcionário ficaram explicando que era necessário ela fazer o exame, resmungando que a paciente era isso ou aquilo e inquietos para resolver logo a situação. Por fim, ela concordou em fazer o exame.
Entro na sala rapidamente, preparou-se para o procedimento, deitou na maca e encobriu o rosto. Em nenhum momento vi seus olhos ou dirigi-lhe a palavra. EU NÃO SERIA CAPAZ DE DESCREVER COM PALAVRAS O CONSTRANGIMENTO QUE EU SENTIA. Ela parecia escrava a quem se impõe uma ordem e que ela realiza, mas com um ódio dos seus "senhorzinhos". Eu queria sair dali!
Estabelecer uma boa relação com o paciente, explicando os procedimentos e dando-lhe o direito de opinar é algo que transcende o que aprendemos na faculdade. Mas não é impossível de se aprender. O fato é que o paciente, principalmente estando em um local de atendimento público, pode se achar fragilizado, dando margem a alguns deslizes de quem lida com eles. Neste dia não aprendi apenas o que era uma colposcopia ou como estadiar o câncer de colo do útero, mas aprendi coisas que se deve levar para a vida: que aquele constrangimento eu não quero mais presenciar!

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

E seu riso era como o dia...

Portrait of a Negress 1800 by Marie-Guillemine Benoist
Quando ela entrou no consultório, eu não sabia a que vinha. Era uma senhora algo sofrida, encurvada e mancava por causa de uns problemas que teve; trazia marcas da doença que a acompanhava a tempos e referia dores  em várias partes do corpo.
Sentou-se. Quando começou a falar sua história, eu estava a um canto, calada, observando. SEUS TREJEITOS TRADUZIAM UMA SENHORA QUE GOSTA DA VIDA, MAS QUE ESTA DECIDIU DAR-LHE O FARDO DE SUA DOENÇA. Por vezes, quando perguntávamos se tinha mais alguma queixa da doença, esquecia e era lembrada pelo acompanhante - parecia até que não estava se importando com a peça que a vida pregou-he.
Lá pelas tantas, começamos a perguntar sobre seus hábitos e ao ser perguntada se fumava, disse rapidamente que fumou por duas semanas, mas que não aguentou ... o preço do cigarro! Fazia-nos rir junto com suas histórias e não se incomodou quando quase uma dezena de pessoas se amontoou no consultório para também ouvir a história das suas "agruras".
Disse ainda que passou o mês de férias todo contando os dias para chegar esse momento, o da consulta na Universidade. A residente, intrigada, perguntou o porquê disso, ao que ouvimos:
- ADORO SER ATENDIDA AQUI. É TANTA GENTE DANDO ATENÇÃO PRA GENTE!
Contou que, de uma outra vez que ficou internada lá, houve uma aula na beira do leito em que estava. Começou a discussão sobre seu caso e o professor, inquisitivo, perguntou algo aos alunos. Ninguém estava sabendo a resposta, mas, como ela mesma disse, ela ouviu tantas vezes essa aula que cochichou para o aluno mais próximo a resposta! E era a resposta correta!
Nossa! E ainda duvidam que os pacientes têm o que nos ensinar!!!

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A dor invisível

"De médico e louco..."
Como fiz quando tive o meu primeiro contato com paciente pediátrico (leia em "E agora? O que vou fazer?"), vou narrar hoje minha primeira experiência com um paciente psiquiátrico.
Nunca fui muito fã de psiquiatria, na verdade tenho alguns problemas para compreender termos e aceitar algumas das teorias sexuais de Freud... Mas o fato é que não podemos 'não gostar' de algo antes de conhecer (nota mental quase nunca cumprida por mim!).
Quando o paciente começou a falar, as definições que nos foram apresentadas nas aulas teóricas afloraram na minha mente e a figura descrita pelo professor estava realmente ali, na minha frente. Um ser humano de carne e osso que o professor definiu como AQUELE QUE TEM UMA DOR INVISÍVEL, UM SOFRIMENTO DA ALMA, dai a difícil configuração no meio acadêmico de sua "doença".
Suas explicações efusivas de como era (ou não era) a sua vida me tocaram profundamente principalmente pela imagem negativa que carrego previamente, que a sociedade mesmo fez o "favor" de pintar para mim: manicômios, camisas de força, agressões, gritos guturais...
Eu, leiga em assuntos psiquiátricos, trazia comigo uma carga social cheia de preconceitos, alguns deles quebrados nessa primeira experiência. Em algum momento da entrevista com este paciente, ele disse algo que me fez relembrar o que me anseia profundamente e que precisei tomar nota para contar aqui a vocês; no meio de seus dizeres rápidos, quase vomitados, porém não tão desconexos, ELE DISSE "EU SOU IMPORTANTE... PARA MIM MESMO". Claro! Esse é o grito do nosso superego que se cala por causa da sociedade. Todos somos o centro das nossas vidas e achamos que somos o centro das vidas das demais pessoas... (não sempre, mas muitas vezes!)
Como costumo falar aqui no blog, eles, os pacientes, sempre trazem algo de novo para a gente, um aprendizado que nos constroi como profissionais, como cidadãos, como pessoas...

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Você é CONTRA ou A FAVOR do aborto?

Foto retirada de http://vivopelavida.com.br
Pode até parecer um tema enfadonho, mas o aborto é atualmente um dos temas que mais merecem ser discutidos e que precisam ser definidas diretrizes. Inicialmente por mexer em algo tão delicado: a definição de onde começa a vida. Em dois extremos temos: quem acredita que a vida começa na fecundação do óvulo e quem acredita que começa no nascimento. Entre esses extremos, temos outras definições. Como meu intuito não é abordar de maneira científica - e sim expressar uma forma de ver a vida - tratarei o tema do ponto de vista do alvo desse blog: o paciente. A QUEM IMPORTA O SER QUE SE DESENVOLVE NA BARRIGA SENÃO, ANTES DE TODOS, ÀQUELA QUE O CARREGA POR MESES? Após a própria criança que está a crescer, a mãe é quem irá permitir que no seu corpo se desenvolva aquele novo cidadão, sendo ela quem sofre as pressões (pressões próprias ou de outras pessoas/do meio). Assim, como pode uma mãe não se preocupar quando se vê em uma situação de risco, sem ter como alimentar seu filho? Não digo que isso é justificativa para o aborto, mas é algo a ser levado em conta na abordagem do tema. Outro fato são as gravidezes de risco. QUANDO "CRIANÇAS" FICAM GRÁVIDAS, A QUEM CONDENAR? Digo condenar porque abortar é condenar alguém a morte e permitir que o bebê nasça é condenar à criança-mãe a uma vida que ela própria não escolheu. Outra coisa que a questão do aborto implica é a família. A imagem de uma família estruturada pouco a pouco se desfaz na mente da sociedade (generalizando, claro!), então será que é crime permitir que uma criança nasça sem a devida estrutura familiar? Ou crime mais grave seria privá-la da vida, para que não sofresse as consequências do meio em que seria inserida?!
É importante ressaltar que TODA PESSOA QUE COMETE UM ABORTO ESTÁ EM SITUAÇÃO DE RISCO. O risco a que me refiro não é somente o risco financeiro e social, mas o risco psicológico também. Mães que teriam condições de dar uma boa situação financeira ao filho "não-desejado" e cometem aborto o fazem por estarem também em situação de risco. Quantas pessoas precisariam apenas de apoio psicológico para não cometerem o aborto? Então, essa questão é bem mais ampla do que apenas "questão financeira". São jovens com medo da reação dos pais, mulheres que foram abandonadas por seus maridos, mulheres que apanham... são diferentes situações que convergem em um só ato: o aborto.
A enquete feita aqui no blog (Você é CONTRA ou A FAVOR do aborto?) trouxe a tona duas questões a se pensar, que é como anda nosso conceito do certo/errado e como a lei nos ampara quanto a isso. O resultado da enquete foi:
Você é CONTRA ou A FAVOR do aborto?


  • Terminantemente contra: 23%
  • Dependendo do caso, sou a favor: 53%
  • Completamente a favor: 15%
  • Não tenho opinião formada: 7%

Como está na nossa Constituição, em geral, as pessoas são a favor do aborto dependendo do caso. Mas isso não quer dizer que é o correto. Para cada item acima há uma justificativa. Quem é "Terminantemente contra" pode apoiar-se nos preceitos bíblicos que falam contra o assassinato e do qual Deus dá-nos o mandamento "Amar o próximo como a ti mesmo". Quem votou em "Dependendo do caso, sou a favor" apoia-se no fato de que ter um filho de um estuprador, por exemplo, não é salutar nem para a mãe, tão pouco para a criança - fruto de um ato inescrupuloso. Quem afirma que é "Completamente a favor" pode garantir-se no direito do indivíduo sobre o seu corpo, que somente ele sabe de todas suas limitações, anseios e desejos. E quem votou em "Não tenho opinião formada" pode ainda enfrentar muitos dilemas ao ler esse texto, mas o fato é que não é tão fácil pesar o que é mais importante: se o direito da mãe sobre sua vida, se o direito do ser - que é indefeso - de viver!

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A primeira...


Final do ano se aproximando e aquela sensação de nostalgia foi se aproximando... relembrando as minhas experiências no Hospital "X", pensei em falar um pouco da primeira paciente que eu tive contato. Antes de iniciar as atividades de "coleta de dados", eu comecei a ler o Porto (Semiologia Médica - Porto®) e tinha o relato de algumas experiências de estudantes com pacientes. Claro, fiquei mais nervosa ainda para o que me aguardava! O fato é que era quase na hora do almoço quando eu entrei no quarto. Aquela senhora me olhou e eu disse um bom dia animado. Sempre achei que convencer um paciente a conversar fosse extremamente difícil. Comecei falando quem eu era, o que pretendia e que ela poderia me mandar embora no momento que quisesse. Ela assentiu e eu comecei a perguntar sobre a doença. Interessante como nós nos identificamos com alguns dos pacientes, e mais: como AS DICAS DOS PROFESSORES/MESTRES DE "NÃO SE APEGAR" FICAM GRITANDO NOS NOSSOS OUVIDOS. Como não se envolver com o relato da dor de um ser humano? Como não se importar com a sua trajetória e como não mostrar isso em gestos e palavras? Isso é uma arte; e como arte, cada um expressa da sua forma!
Quando as perguntas do roteiro chegaram na parte de perguntar sobre a família, a paciente começou a chorar. Ela estava envergonhada e pedia desculpas por aquilo. Desculpas por mostrar-se humana? Pois é, a conceituação de "ato médico" está socialmente tachada como "fria". Eu não tinha lenço (e nosso(a) professor(a) de "Desenvolvimento Pessoal" tinha avisado para sempre levar na bolsa!) e só pude oferecer um guardanapo que tinha na cômoda e minha licença para ela se expressar... muito anormal isso!
Uma funcionária do hospital trouxe o almoço da paciente e eu sentei para esperá-la terminar de comer. Bem, ficar observando aquela senhora comendo não foi uma boa idéia. TODA SENSAÇÃO QUE TEMOS TEM INFLUÊNCIA DE EXPERIÊNCIAS QUE JÁ TIVEMOS, então observá-la foi lembrar da minha avó e de muitas outras senhorinhas, foi pensar em como somos frágeis e o quanto de história carregamos conosco, foi brigar comigo mesma por ser cobrada para não me envolver, foi... foi... foi difícil!
Eu havia perguntado a um(a) professor(a) qual a opinião dele sobre nossas ações a beira do leito, em especial, perguntei o que ele(a) achava de passar a mão na cabeça do paciente... Sua resposta foi de que isso era muito pessoal, que o paciente confundiria isso com permissividade e que tínhamos que manter a postura de profissionais. Outro dia fomos (minha turma e um(a) outro(a) professor(a) ) discutir o caso dessa paciente. Quando todos saíram, voltei, perguntei como ela estava se sentindo e passei a mão na sua cabeça. MINHA MÃO SOBRE AQUELES CABELOS RALINHOS, RALINHOS, ME FIZERAM LEMBRAR QUE, ANTES DE PROFISSIONAL, PRETENDO AINDA SER HUMANA DAQUI HÁ 10 ANOS. O limite entre o profissional e o pessoal é muito tênue e não existe certo ou errado em ciências humanas. Eu ainda procuro o que é o certo... ainda!

sábado, 6 de novembro de 2010

O seu procedimento tem riscos, sim!

Imagem de Arthur Rackham (Scrooge) - Você quer conhecer a verdade?
Atualmente discute-se muito a necessidade de compartilhar com o paciente o passo-a-passo dos procedimentos a que será submetido e a sua doença. É interessante como muitos de nós tende a pensar que não adianta discutir essas coisas com o paciente, já que este não teria - teoricamente - como entender muitas das coisas que nós diríamos. Mas é fato que há diversas formas de expor esses fatos aos pacientes, e que eles têm total direito de saber e discutir sobre esses procedimentos.
Dia desses eu tive uma das mais ricas experiências no que diz respeito a pôr em prática o que se fala em sala. Em uma aula, abordamos uma paciente para fazer uns exames já que esta seria submetida a uma cirurgia. Até ai, eu não sabia como seria isso, se seriam feitas perguntas e o encaminhamento , ou se nós apenas auscultaríamos coração/pulmão, olharíamos as mucosas e leríamos exames laboratoriais. Pois bem, começada a aula, o(a) doutor(a) começou a fazer uma série de perguntas, sempre explicando o porque de cada uma delas - para nós e para a paciente. Ao fim disso, virou-se para ela (e exclusivamente para ela) explicando os riscos da cirurgia e principalmente os procedimentos. Falou do tubo que percorreria a sua garganta, da forma que seria sedada, de como acordaria e o que ocorreria caso houvesse complicações na cirurgia. falou do suporte técnico do Hospital "X" e de como, pela sua experiência, ele via os riscos dessa cirurgia. TUDO ISSO DE MANEIRA CLARA, OBJETIVA E DOCE - A PACIENTE SOUBE EXATAMENTE O QUE LHE OCORRERIA E PÔDE TIRAR SUAS DÚVIDAS.
Por muito tempo duvidei de que fosse possível abordar o paciente, explicando-lhe sua doença e como a equipe hospitalar agiria. Naquele dia pude ver que, mais do que pacientes, são pessoas que - como eu já havia mencionado antes (texto "Mas não foi isso que você me perguntou") - têm autonomia. Outro dia tive a oportunidade de ver um procedimento ser feito sem ao menos falar com a paciente: vi-a deitada na maca, umas sete pessoas da equipe para cima e para baixo, atarefados demais para avisar a hora que iriam injetar o anestésico na veia. Ao penetrar nos vasos sanguíneos, o ardor "não avisado" pôde ser sentido até por mim, que assistia a expressão facial da paciente modificar-se, contorcer-se a olhos vivos, sem que a equipe percebesse. E não foi somente eu quem percebeu... Enfim, compartilhar com o paciente os fatos da sua doença pode parecer boabagem, mas é um direito que ele tem. Porém, têm-se formas e mais formas de se fazer isso, mas esse é assunto para uma outra hora...

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

"Mas não foi isso que você me perguntou"

"Mas não foi isso que você me perguntou"... foi o que eu ouvi uma paciente dizer a(o) doutor(a). O engraçado é que nós, em geral, não costumamos ver pacientes que impõem sua vontade - ou não queremos notá-los. Essa foi mais uma das lições ensinadas a mim pelos pacientes: ELES TÊM AUTONOMIA, VONTADES E VOZ!
Estava em uma aula comum, quando vi aquela senhorinha indefesa no leito. Ora, avistando-a houve que pensasse (eu me incluo) na descrição clássica para escrever no exame físico: estado geral regular, fácies cansada... Quando começamos as perguntar, as resposta vieram meio em tom de deboche:

"o que trouxe a senhora aqui?"
"eu tava com dor na barriga e o médico disse que era rim" (modificado)
"mas o que a senhora sentiu pra ter ido no médico"
"pois eu tava com essa dor, fiz uns exames e o médico disse que era rim"
"não, mas a  minha pergunta 'foi o que a senhora sentiu pra ter ido ao médico' "
"mas não foi isso que você me perguntou"


Mais tarde, apesar de o esforço para negar a relação dor na barriga e rim, a paciente se mantinha firme: tem relação com o rim sim! O interessante é que cada paciente tem a sua própria forma de ser autônomo ou de se entregar aos cuidados do profissional. Alguns só informam o que estão sentido e, quando perguntamos se têm dúvidas, apenas negativam com a cabeça. Outros se mostram mais entregues, como foi em uma entrevista, quando perguntamos se a paciente tinha alguma pergunta, ela falou "eu só quero saber se eu tenho câncer, doutor(a)". Mas há aqueles que se fazem ouvir...
Aliás, autonomia não é qualidade só do paciente que nós iremos lidar... Certa vez, a acompanhante de um paciente (este bastante debilitado) me chamou bastante a atenção e merece ser citada como exemplo de autonomia, ou melhor, posse de sua realidade. Apesar de ter sua vida girando em torno da doença do marido (a doença adoece também o lar), a acompanhante se mostrou ativa e conhecedora da realidade que cercava seu marido. Logicamente, não conhecia muitas das coisas que são invariavelmente omitidas pelos profissionais, mas ela deu mostrou-se conhecedora de todos os procedimentos, exames, hipóteses, etc, etc, nesses quase dez anos de doença do marido.
Ou seja, a gente não pode esquecer que o paciente (e sua família) tem vontades... DEIXE ELE FALAR, PERGUNTAR, SE EXPRESSAR... DOIS MINUTINHOS CEDIDOS ÀS VONTADES DELES NÃO VÃO MUDAR A NOSSA VIDA, mas pode melhorar consideravelmente a auto-estima deles e a vontade de encarar a sua doença.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Você é meu...

Ilustração de Arthur Rackham
Muitos de nós pensamos que tudo o que nos cerca é nosso, ou diz respeito a nós. Muitos de nossos pensamentos têm como imagem central nós mesmos. E isso não é ser certo ou errado, é apenas a realidade. Mas até onde essa forma de agir não irá interferir na forma que agimos com as outras pessoas? Aqueles que prestamos serviços (os pacientes) percebem essa "mania" de nos colocarmos no centro de tudo?! EMPATIA: "Tendência para sentir o que sentiria caso estivesse na situação e circunstâncias experimentadas por outra pessoa" (Dicionário Aurélio). A empatia seria a solução para a melhor atuação com os pacientes. Quantas vezes não escutei (e eu mesmo digo) "vou ver o 'meu' paciente", ou ainda "o 'meu' paciente estava...". Bem, é por agir assim que muitas vezes expomos os doentes a situações ruins e, muitas vezes, dolorosas.
Nesse dia entramos no quarto com diversos pacientes que nos olhavam, como sempre, apreensivos. Entrar no quarto com cadernos nas mãos é sempre uma situação em que suspendo a respiração e aguardo os olhares fuzilantes sobre mim. Nos aproximamos de uma senhora, jovem, casada e muito, muito doente. Sua febre estava tão alta que sua fala era entrecortada pelo "bater de dentes". Além disso, seu coração palpitava tão alto que o subir-descer torácico podia ser percebido sobre suas vestes. Ela foi avisada de que poderia nos dispensar quando se sentisse incomodada, e isso foi reiterado diversas vezes pelo(a) profissional que nos acompanhava. Porém, isso era dito da seguinte forma: "se a senhora estiver muito cansada, pode avisar que a gente para, mas me diga como foi que começou essa doença". E mais uma bateria de perguntar eram "vomitadas", e isso se seguiu por mais duas horas e meia... A última meia hora foi gasta com o exame físico... diversos alunos palpando linfonodos cervicais, occipitais, axilares, ... Discutindo se sua fácies era de lua cheia ou se era apenas edema, (o(a) profissional) contando relatos sobre pessoas que não podiam ter filhos, que tinham tido câncer, que tinham tido eritroblastose fetal... o marido daquela senhora nos olhava com olhar de súplica, talvez pensando: "ela sobrevive, doutor(a)?".


Vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=bMcQ4U_U6n4&feature=channel
A profissional age como muitos de nós: não explica os procedimentos e não fornece opções para o paciente


Então, tendo essas experiências, eu me pergunto: onde está a nossa empatia? Esses seres humanos têm o direito de saber "o que têm", "por que têm", "como não ter"... É fato que O RELATO DOS PACIENTE É PARTE ESSENCIAL DAS NOSSAS ATIVIDADES, NOS AUXILIA NO ENSINO E PERMITE QUE BUSQUEMOS A CURA (OU PALIAÇÃO) DA SUA DOENÇA, mas muitas vezes saio "arrasada" do hospital. São pessoas que sofrem e que só querem se livrar daquilo. São pessoas que nos prestam um serviço e que têm como recompensa a possibilidade de se curar. Cabe a nós, futuros médicos, saber quando devemos submeter o paciente a determinados esforços ou quando devemos procurar alternativas para isso...

sábado, 30 de outubro de 2010

Quando o paciente te diz "não"

Fotografia de Kim Anderson
É muito difícil pra muitos estudante (da área da Saúde) chegar em uma pessoa que está acamada e iniciar uma conversa. Ainda mais quando essa conversa é apenas uma repetição da história contada por ele muitas e muitas vezes. O fato é que as horas passam devagar quando se está em um hospital e ter que ser subserviente sempre que alguém se aproxima não é tão fácil assim. QUEM JÁ LEVOU UM "NÃO" DE UM PACIENTE vê com novos olhos essa aproximação.
Bem, quando percorremos os corredores olhando leito a leito alguém de quem ouvir a história, algo acontece sem que muitas vezes percebamos: aquelas pessoas nos olham, olham aquelas folhas nas mãos e entendem porque estamos tão curiosos olhando para os quartos. São pessoas das mais diversas origens, não falo só de origem social. São vidas diferentes que se abrem para os nossos ouvidos através de palavras ditas (ou vomitadas) e por palavras não-ditas.
Eu, particularmente, não ouvi meu não ainda... mas alguns dos meus amigos já me contaram suas experiências e eu passei por uma muito próxima a isso. Tratava-se de um rapaz, que aparentava uns vinte e poucos anos e estava com uma fáceis de poucos amigo (não tem essa descrição no Porto®, mas era assim que ele estava!).  Quando entrei no quarto e cumprimentei as pessoas, sua mãe já estava rindo (de mim). Com certeza ela - que conhecia mais ele que eu - sabia que ele ia me dizer que "não" estava afim de conversar. Aproximei-me e disse diretamente para ele "bom dia". É, ele nem se deu ao trabalho de responder. Lógico que eu não insisti, afinal eu poderia colher o relato de qualquer paciente, mas GARANTO QUE AQUILO FOI FRUSTRANTE.
Nós temos que entender quando o paciente está ou não disposto a conversar, principalmente porque nós queremos ajudar, e não trazer mais sofrimento. Ele está ali para ser cuidado, e não para ser atazanado. Como foi em uma dessas idas ao hospital "X", em que um(a) Dr(a), discutindo o caso na frente da paciente por "pequenas" três horas, estando a paciente com uma febre a quase quarenta... mas isso é uma outra história!