terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Desliguem os aparelhos

Imagem retirada do blog sou-o-que-digo-e-penso.blogspot.com
Dava uma olhada na movimentação: horário de visita. Sempre me interesso em olhar essa relação de visitante-paciente. Lógico, não quero ouvir suas conversas, mas acho bonito o fato de o visitante manter o contato do paciente com o mundo externo, para além das paredes verdes daquele hospital.
De repente fora retirada do meu "transe" por uma senhora que me chamou ao leito da sua mãe. As lágrimas já haviam secado no seu rosto e faziam dois caminhos que cortavam seu rosto em pontos simétricos. Ela estava maquiada, porém seu semblante estava cansado, como o de alguém passou dias entre vindas ao hospital e idas para seu lar/trabalho. Seu tom de voz, um pouco elevado, me perguntava quem estava acompanhando o caso da mãe dela.

- Senhora, vou pegar o prontuário para identificar quem é o médico responsável por ela - eu disse.

Ela então disparou uma série de queixas que, certamente, estavam entaladas em sua garganta. Talvez ela tenha pensado em dizer isso há bastante tempo, mas lhe faltava coragem e, em meio ao desespero de ver sua mãe por tantos dias ali, em um leito hospitalar e respirando com o auxílio de aparelhos (e apenas pelo seu auxílio), ela decidiu dizer:

- Pelo amor de Deus, porque vocês não desligam logo esses aparelhos?

Lógico, ela não queria sua mãe morta: ela queria ela sem sofrimento. NÓS GERALMENTE NÃO PENSAMOS EM MORTE ATÉ DEPARARMOS ELA, MAS É IMPORTANTE QUE NOS QUESTIONEMOS QUAL SERIA O MAIS VIÁVEL, OU MENOS DOLOROSO, OU AINDA, QUAL SERIA O DESEJO DO PACIENTE SE ESTE ESTIVESSE EM CONDIÇÕES DE SE EXPRESSAR!
Depois que ela saiu, voltei ao leito e olhei a senhora já de idade bastante avançada. O que ela diria a sua filha? Talvez agradecesse pela coragem de se expressar, refletindo o que ela própria falaria. Talvez ela ficasse zangada pela mal-criação da sua "menina". O fato é que, ainda naquela tarde, depois de eu ter remoído diversas vezes as palavras que a filha havia me dito, a senhora veio a falecer, dando tempo de uma última visita da filha que sofria e dos outros familiares que sentirão falta daqueles cabelos branquinhos-branquinhos que por longos dias repousaram no lençol do hospital.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Série Outras Impressões - Uma Menina Talentosa

A série "Outras Impressões" traz, em sua sétima edição, o relato do médico recém-formado Levi Machado que nos impressiona pela leveza do falar e pelos dizeres cheios de uma amor que nossa profissão (ou futura profissão) nos dá: ai está a Medicina nos gritando o porquê de a termos escolhido!

Levi C. Machado - Médico
"Lembrou-me a minha época de interno – falo como se fizesse bastante tempo, mas foi quase um dia desses – ter o meu celular roubado em uma manhā qualquer do mês de Agosto.

Por que lembrou-me esse tempo tāo difícil o ter tido o telefone furtado? Será o meu segredo por enquanto, mas a lembrança fora justamente do último serviço que rodei aqui no Brasil em meados de Dezembro do ano passado, o posto da saúde comunitária.

Atender no posto como acadêmico de medicina é uma experiência interessante; esse talvez seja o único mês do internato em que o estudante realmente faz a diferença na conduta e avaliaçāo dos doentes, as vezes por falta de conhecimento, as vezes por falta de tempo daqueles que sāo responsáveis por esses serviços. Os pacientes nāo têm diagnósticos firmados nem sāo acompanhados em ambulatórios especializados, o que nivela um pouco o embate intelectual entre aluno e “mestre”. Nesse serviço, a opiniāo do estudante é realmente valorizada, o único em que ele se sente um pouco mais médico e menos aluno, e com uma vantagem: nāo há obrigaçāo quanto a produtividade; o estudante pode realizar a consulta que quiser, completa ou nem tanto, de acordo com sua personalidade ou conveniência.

Estava num dia daqueles, paciente e querendo realmente conhecer a fundo cada doente, buscar em seus sintomas uma doença rara que passara despercebida, melhorar cada prescriçāo por detalhes de farmacocinética ou perfil de efeitos colaterais. Num daqueles dias de pouca preguiça intelectual em que realmente aprecio a complexidade daquilo que faço ao invés de me maldizer dela. Usar a cabeça em raciocínios cartesianos complexos e produtivos me faz feliz – pelo menos nos dias certos. Naquele dia, adentrou uma menina, a quarta paciente de uma tarde longa, uma mocinha linda de uns 11 anos de idade, detentora de corpinho magro, rostinho arredondado, cabelos lisos castanho escuros e uns olhinhos levemente puxados que ostentavam com graça a genética indígena que carregava em si. Ela entrou faceira, segura de si, conduzindo a māe, que levava a sua irmāzinha de colo. Fazia contraste com qualquer paciente dessa idade, os quais geralmente entram acanhados, com receio e esperam a māe falar por eles tudo o que sentem; ela nāo, sentou-se e se apresentou:

- Oi, eu sou a Rayssa!

Admito, essa mocinha me cativou logo de cara. Todos os médicos também sāo gente e, apesar de todo o discurso do cuidado indiferenciado, temos a tendência de sermos mais minuciosos e cuidadosos para com pacientes de quem gostamos, um processo natural denominado contratransferência, do qual fala-se muito, mas de cuja discussāo excessiva pouco importa – só nāo deve ser exagerado.

- O que você sente Rayssa? – lhe perguntei
- Eu estou sentindo uma dor em pontada bem aqui – apontou com o dedo – ela as vezes vem para cá, piora com comida e quando eu me deito, passa logo, mas volta depois.

Intrigou-me instantaneamente o fato dela ter sido capaz de fornecer apenas com a pergunta inicial toda a descriçāo que eu precisava da dor. Apercebi-me de duas informaçōes: ela ia bastante ao médico e possuía muita capacidade de observaçāo e inteligência. Grande parte dos adultos diriam “uma dor cansada”, “uma dor forte”, e me exigiriam técnicas de simplificaçāo como exemplificaçāo e perguntas mais objetivas. E ela era uma mocinha apenas. A māe a interrompeu:

- Essa menina tá doente de novo. Vive gripada.
- A minha garganta dói um pouco e eu tusso, mas mais a noite, de dia nāo me incomoda tanto. Tudo começou há dois dias, mas vai passar. Já me acostumei com essas crises, elas duram 4 dias e eu fico boa depois.

Fiz-lhe algumas perguntas de praxe para descartar algumas enfermidades e examinei-a minuciosamente sem encontrar a causa dessa dor de estomago.

- Dr, ela toma um remédio também – notificou-me a māe ao notar o meu interesse em adquirir o máximo de informaçōes possíveis.
- Qual?
-A... Atritpi.... nāo sei...
- É amitriptilina, māe! – respondeu a menina, impaciente.

Ela provavelmente foi a única paciente atendida por mim que acertou o nome da droga de primeira, mas isso nāo me importava. “Por que ela toma isso!?”, pensei segurando a minha surpresa.

-Quem foi que passou esse remédio para você? – perguntei já me preparando para escutar uma barbaridade de conduta.
- Um doutor psiquiatra disse que eu tinha fibromialgia, sofria de muitas dores no corpo e o remédio ajuda um pouco.
- E como começou isso tudo?
- Começou quando o meu pai foi embora...

Ahh, se eu tivesse uma memória eidética para me lembrar com detalhes daquele discurso feito por uma garotinha abandonada. Ela se expressava com grande nível de detalhe e profundidade de pensamento, possuía um discurso direto, fluido e complexo para a sua idade, com uso perfeito das preposiçōes e conjunçōes, “Nossa! Ela se expressa bem melhor do que eu!”, pensei ao me ver admirando as suas habilidades lingüísticas, ainda cruas, mas que transmitiam grande emoçāo e denotavam um enorme talento: daqueles raros, que brilham mesmo nāo lapidados. JÁ ADMIREI MULHERES POR VÁRIOS MOTIVOS, FORÇA DE VONTADE, RESILIÊNCIA, BELEZA, SIMPATIA, ABNEGAÇÃO, AMOR, MAS ELA TALVEZ TENHA SIDO A ÚNICA QUE ADMIREI PELO TALENTO QUE POSSUÍA, TECIDO NA DOR E NA PERDA DA INOCÊNCIA.

A māe dela se ausentou para atender o telefone e deixou a sua filhinha de colo com a irmā. E a Rayssa se soltava ainda mais notando o meu interesse na sua história.

- Eu tomo conta dessa menina as vezes, mas é muito difícil. Ela é muito mal cuidada, há dias notei essa mancha no rosto dela, parece uma micose, mas a minha māe nāo liga; sempre preocupada com seus afazeres ou largada em qualquer canto da casa chorando e queixando-se do mundo. E o meu pai nem fala mais com a gente, nāo sei como um pai larga os filhos desse jeito só por causa da sua outra mulher – disse com grande expressāo emotiva que seria capaz de dilacerar os coraçōes mais duros. Ela continuou a transbordar a dor de ser abandonada pelo pai por ser mal quista pela madrasta com aquela bela linguagem, singela, mas com tanta coerência, concatenada, bem construída, emocionada e quase ritmada enquanto eu pensava:

“ahh, menininha talentosa, se você fosse a minha filha, mulher nenhuma do mundo me faria esquecer você”.

Discutimos diferenciais no posto que passearam sobre o problema imediato dela e outros possivelmente crônicos, mas nada disso me parecia suficiente. Ali tínhamos uma doença puramente social e emocional, algo além da nossa ciência e que nāo pode ser corrigido com remédios – por mais que nos enganemos.

Perguntei como era o seu desempenho na escola e ela me disse que faltava bastante, mas o conteúdo era muito fácil. “Mais um talento que nāo irá florescer” pensei com muito pesar na alma, pois pouco é capaz de entristecer-me tanto quanto potencial nāo alcançado – talvez porque eu viva a desperdiçar o meu. Peguei o seu telefone, pois me obrigavam a fazê-lo para constatar atendimentos – o rigor da vigilância aos estudantes é diretamente proporcional a falta de organizaçāo e comprometimento com o ensino deles – e gravei-o em meu celular.

“Algum dia, quando eu estiver em melhor situaçāo, eu vou ajudar essa menina!” Fiz essa promessa já imaginando-me como porto seguro dela, cultivando o seu talento e fazê-lo desabrochar. Queria dar-lhe condiçōes para ser o que ela quisesse, realizar qualquer desejo do seu âmago com o grande presente que ela tinha recebido do acaso. Ela poderia me superar em tudo, quem sabe até criar em mim um pouco de inveja junto ao grande orgulho que me daria, mas nada importava se de uma mocinha que nāo tinha nada, apenas potencial, fosse criado um diamante a brilhar com grande intensidade pelas intempéries da sua criaçāo e lapidaçāo zelosa.

Nunca me esqueci dessa garotinha, mesmo que o pensamento nāo se detivesse nela com tanta freqüência. E na tarde do furto, quando voltava para casa, percebi com pesar:

“Eu perdi o número dela...” sabia que todos os outros números, os dos amigos, das garotas, dos contatos profissionais, todos eram facilmente recuperáveis; o valor material do meu celular nāo me incomodava em nada; mas o número da Rayssa, esse eu nāo recuperaria. Estava perdido para mim, motivo de minha grande tristeza naquela tarde de arrependimentos por ter decepcionado a mim e também abandonado mais uma como tantas vezes já fiz: aquela menininha talentosa."

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Muito obrigado, muito obrigado

Imagem retirada de expressobullying.blogspot.com.br
Haviam-me avisado que o familiar estava lá fora para que me informasse o que ocorreu com sua mãe. Um homem me esperava um tanto nervoso. Ao me apresentar, iniciei uma sequencia de perguntas: "ela teve febre?", "desmaiou?", "sentia dor há quantos dias?". Perguntei, perguntei, perguntei, mas não era isso que ele queria me falar. Ele queria saber se sua mãe sairia daquela e, SÓ DEPOIS DA MINHA DESELEGANTE ATITUDE, PERCEBI QUE SEUS OLHOS ESTAVAM MAREJADOS DE LÁGRIMAS. E que ele tinha uma fala aflita de que está prestes a desabar. E que todo seu corpo gritava um pedido de ajuda. Depois de apoquentá-lo com tantos questionamentos, e só então percebê-lo humano, é que parei e vi o que havia feito: precisava confortá-lo na sua dor.
Assim, falei calmamente da situação de sua mãe, de como havia chegado e o que já havia sido feito. Disse que havíamos examinado-a há pouco tempo e que foram prescritas determinadas medicações. Aos poucos ele foi expondo suas aflições, do quanto tinha medo de que ela falecesse. Na despedida, ele agradeceu bastante as explicações, da mesma forma que o fez quando retornou mais tarde, no horário de visitas.
Então, fiquei pensando em como esquecemos muitas vezes de atender à simples necessidade de informar claramente os familiares, falar a real situação e orientá-los. Estava com a sensação de que todos agíamos assim, perguntando o que a pessoa sabia sobre aquele caso e pronto, afinal havíamos conseguido o que queríamos. Esse pensamento estava rondando minha cabeça enquanto retornava à sala, quando deparei uma médica falando com outros acompanhantes. Ela terminava a explicação e perguntava se alguém tinha algo mais a perguntar. Apertou-lhes as mãos, uma por uma e mostrou-se disponível afirmando que passaria o dia lá, caso precisassem. Bem, nossa saúde pública não está perdida. Não está!

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Ida a outro mundo, ainda em vida

Imagem retirada de nucleoholistico.com.br
Eu já havia entrado em UTI's outras vezes, porém começar a estagiar em uma delas me levou a algumas observações interessantes sobre os pacientes, os familiares e a equipe de trabalho.Tenho visto, por exemplo, que eu própria tenho um zelo extremado no que se refere ao silêncio. E, bem, algumas vezes me pego incomodada quando algumas pessoas não respeitam esse silêncio que eu espero das UTI's. Entretanto, impressões pessoais a parte, o que me tem chamado atenção é a relação que existe entre os pacientes e os familiares. Eles ficam muito tempo esperando lá fora, atrás do vidro, até que alguém surja e diga que é permitido que entrem. Aproximam-se e mal recebem as instruções de como se portar (afinal, não é obrigação deles que saibam que os pacientes podem estar infectados com bactérias multirresistentes, "ou seja lá o que isso quer dizer"!), mas prontamente recebem chamadas pelos pequenos erros que vêm a cometer: encostar em materiais contaminados, vestir os jalecos descartáveis e jogá-los em locais inapropriados, soltarem as contenções que evitam que o paciente desconecte os fios que trazem e levam medicações, etc.
Os parentes olham lentamente o familiar, como se o simples olhar pudesse machucá-lo de alguma forma. Geralmente não trazem lágrimas ou contêm estas até que o paciente não as possa ver. É difícil também ser familiar. Não se está acamado e sofrendo dores, mas se está lutando com seus sentimentos. Sentimento de saudade do ente que está no hospital, pena de vê-lo naquela situação, cansaço pelas frequentes idas ao hospital, estresse por conta dos problemas que este deixou por resolver.
Não sei se foi apenas impressão, mas estes visitantes são mais contidos que os demais de todo o hospital. Estão mais mastigados pela demora da recuperação, talvez, ou apenas entendem que não adianta, como em outras partes do hospital, gritar com o corpo de enfermagem por atenção ao seu parente: eles recebem atenção necessária, 24hs, mas não depende apenas de atenção. "Há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia", e assim prosseguem as visitas nas UTI's: PARECEM SERES QUE SAEM DO SEU MUNDO POR ALGUNS INSTANTES PARA VISITAR PARENTES QUE MUITAS VEZES NÃO LHE PODEM FALAR OU MESMO VER, MAS AINDA ASSIM DEIXAM SUAS REALIDADES PARA VIVENCIAREM AQUELES MOMENTOS.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Vida sob uma linha

Imagem retirada de hscj.com.br
Todos da sala ficaram alarmados, como de costume, com a entrada daquele paciente em parada cardíaca. Havia, há pouco, comentado com um colega sobre uma postagem do blog (ler aqui) e o fato de que as reanimações cardíacas muitas vezes nos frustrava. Iniciaram-se os procedimentos de praxe e corremos para nos paramentar para a reanimação. O primeiro estudante, ele próprio, iniciou as massagens. "Um minuto", gritava a doutora que estava fazendo a contagem; "Troca", subiu outra colega para reanimá-lo.
Não conseguia parar de pensar no fato de que era um paciente relativamente jovem que estava ali, nas mãos da equipe, que dependia das massagens, das medicações, da eficiência do serviço, da sua própria constituição física e, sim, de sua sorte. Muitos fatores que influenciariam o seu retorno ao "ritmo cardíaco regular, em dois tempos, bulhas normofonéticas, sem sopro", e dentre estes fatores estávamos nós!
Quando me aproximei para massageá-lo, posicionei-me em frente ao seu tórax, mão dominante abaixo da outra mão, braços retos e comecei a contagem. Uma outra colega havia me dito na semana anterior uma maneira de contar o ritmo da massagem, mas desisti na quinta compressão porque aquele ritmo simplesmente não conseguia entrar no meu cérebro. Fui para o tradicional "e 1 e 2 e 3..." e fiquei assim pelos próximos dois minutos. Não sei, mas olhei apenas rapidamente para o rosto daquele senhor. Diferentemente da senhora do outro texto, naquele dia não queria que, além da minha frustração, os pensamentos sobre a sua vida e família me ficassem rondando por tanto tempo. Mas foi inevitável não pensar neles! E UM TURBILHÃO DE IMAGENS COMEÇOU A DANÇAR NA MINHA CABEÇA MAIS UMA VEZ, COMO SE QUISESSEM ME PROVAR QUE NÃO ADIANTA QUERER SEPARAR A RAZÃO DO CORAÇÃO, ELES ANDAM COM NAMORADOS, DIRIA ATÉ COMO RECÉM-NAMORADOS, MÃOS DADAS E BEIJINHOS: NÃO SE DESGRUDAM, NÃO ADIANTA!
Quando a voz da doutora me trouxe de volta à sala, vi que era hora de checar o pulso. Virei-me para o monitor e vi que a "linha de sua vida" estava pulsando. Mas isso não significaria muita coisa se a doutora não houvesse dito, junto a essa observação, que o paciente tinha pulso palpável. Ele tinha pulso!!! Tínhamos reanimado o paciente com sucesso! O meu colega olhou para mim e seus olhos tinham um brilho tão particular de quem diz " Conseguimos". A despeito da nossa vitória particular, os demais pareciam já ter visto isto demais. Nós dois não, ele repetia "Conseguimos", eu queria gritar! Nossa primeira reanimação com sucesso, como não ficar feliz?
Liguei para a minha mãe para avisar, disse ao meu namorado, comentei com os colegas. Claro, não havia feito nada sozinha, mas fiz um pouco pela volta daquele paciente. Ah, fiz sim!

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Eu, gripô

Imagem retirada de rafaelasahib.blogspot.com
Engraçado como são as coisas da vida. Parece que quando você é estudante da área da saúde, todos os seus amigos e parentes querem que você esteja 24hs agindo como profissional da saúde. E tudo isso se torna pior quando você adoece!
Esses dias estive doente e eu nunca (leia-se "nunca") gostei de tomar remédio. Tenho pena do meu fígado e me dói quando vejo as pessoas tomarem paracetamol como água. Sim, eles tomam. Isso é, inclusive, motivo de "mini-discussões" frequentes com meu namorado. Paracetamol e antibióticos.
Enfim, estive doente esses dias e acreditei ser uma bobagem. "Água e descanso" foi minha auto-prescrição! Depois vieram as "meisinhas" da minha mãe: tome suco de laranja que é ótimo pra isso, beba esse melzinho, cheire essa infusão de Vickâ e água, tome esse remédio. Eu fui piorando. Depois de três noites sem dormir, segui o conselho de amigos e mãe: fui ao médico.
Bem, eu estava mesmo doente, precisando de remédios e antibióticos. Remédios dos quais eu nem imaginei precisar.
Sim, nós da área da saúde queremos ser auto-suficientes, mas não é fácil. Além de não sabermos de tudo e de algumas vezes não pensarmos em certos diagnósticos (por não sermos especialistas naquela área), ainda tem os amigos/familiares para nos lembrar isso... e falar, falar, falar. Agradeço-os pela ajuda, claro. Mas escutei muito esses dias.
- Doutora, doutora, não quer se cuidar!
Agora a "doutora" está se cuidando e está "noiada". Comer de três em três horas e tomar todos os remédios mandados. A minha mãe agradece!




p.s.: Esse texto é dedicado à Lourdinha, Nati e Pedro Jorge.

Breve vida

Imagem retirada de citacoesepoesias.blogspot.com
O plantão estava agitado. Normal para o local que eu estava: estava na sala que recebia as pessoas com iminência ou em parada cardíaca.
O fato é que, lá pelas tantas, uma das pacientes para e já estavam reanimando-a quando eu cheguei. "E um e dois e três..." contava-se as compressões que eram feitas naquele peito que subia e descia apenas por causa do respirador manual.
Eu ainda não havia reanimado ninguém lá, então a médica olhou para mim e disse que eu o fizesse.
Procurei a escadinha e comecei a minha contagem. Há quem diga que os dois minutos de massagem cardíaca são os mais longos do dia-a-dia do médico. E são! Mas cada pessoa tem seus motivos para dizer isso, e aqui digo os meus.
A senhora tinha aproximadamente cinquenta e tantos anos e seus olhos estavam com aquele brilho cego que ninguém quer vislumbrar. O olhar no nada olhava para mim, eu sabia, e aqui dentro alguma coisa pedia: volte à vida, volte à vida. Claro que aprendemos na faculdade que é necessário desprender-se de alguns sentimentos para poder seguir na profissão, tal qual uma freira que, por percorrer diversas instituições, não se deve apegar demais aos convivas. Bem, não sou freira. Nem boa futura médica, então. Foi inevitável pensar nos familiares daquela mulher e nos muitos anos que ela teria pela frente. Foi inevitável encarar aqueles olhos e fazer uma breve oração (ou seria um mantra?): volte à vida, volte à vida.
Fiz ainda outro ciclo de massagem torácica e me dei conta de que essa sensação, de que aquela pessoa tem sim uma história, me acompanharia em todas as reanimações. Foi assim na primeira vez, na segunda, na terceira. Foi assim quando eu vi o senhor também de meia idade parar na minha frente e todos naquela sala caminharem com calma. Engraçado que dia desses li em um renomado livro de emergências médicas que o médico emergencista deve ter, entre outras qualidades, calma em situações extremas. O que tenho a dizer é que tenho muito que aprender ainda! Mas que espero não desaprender esse sentimento que me faz amar a Medicina.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Série "Outras Impressões" - Sobre Médicos



A sexta edição da série "Outras Impressões" compartilho um texto que me fora apresentado pelo acadêmico Jean Souza, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, e que, depois, achei-o na Página Pensamentos Leosavassianos (Quer conhecê-la e curti-la? Clique aqui). Muito bom, cheio de uma boa verdade que doi, mas que é necessária. A autoria do texto é de (assim está escrito) Francisco Rocha, médico de alma, e o título é "Sobre médicos". Vale a pena ler na íntegra!


Imagem da Página Pensamentos Leosavassianos, de propriedade de Leonardo C. M. Savassi
"Sobre Médicos
Por Francisco Rocha, médico de alma.

Olha, somos, sim, muito mal pagos. Desculpem-me todas as outras profissões (que também são mal pagas), mas nós lidamos com a morte o tempo todo, seja para afastá-la por mais tempo ou dando conforto para sua chegada cada vez mais próxima, ouvimos dores o tempo todo, seja o médico psiquiatra ou cirurgião, somos quase sempre os vilões: para a mídia, nós não atendemos pacientes, nós recusamos cirurgias, não fazemos partos, estamos interessados somente em prescrever remédios para ganhar vantagens da indústria farmacêutica; para os pacientes, temos má vontade em atender, atendemos com pressa, somos grossos se não estamos de bom humor, somos preguiçosos se dormimos no plantão, somos demorados se fazemos hora do almoço, somos o capeta se o paciente morre mesmo que tenhamos feito de tudo, somos santos (e é tão pesado ser santo quanto demônio) se o paciente se salva; para nossos empregadores (planos, serviço público) somos produtividade apenas, ferramentas de propaganda política, lucro; para nossos colegas somos menores se não temos residências mil, somos medíocres se somos "somente" médicos de família, bruxos se somos Psiquiatra, carniceiros se somos cirurgiões, arrogantes se somos neurocirurgiões, menos capazes se cuidamos só de crianças, nem médicos somos se somos radiologistas ou patologistas. Para todas as outras profissões somos metidos, reclamões.
Poxa, estudamos, sim, por mais tempo, nosso curso é muito difícil se levado a sério, e não é difícil por causa das disciplinas, porque para mim nada é mais difícil do que física, por exemplo, mas difícil pela responsabilidade da nossa profissão. Quando se faz Medicina por amor, como eu faço, sabe-se que, quanto mais sabemos, mais ferramentas para matar o paciente se tem. Sim, matar, porque é muito mais fácil cometer um erro quando se tem mais opções. Quando decidimos um tratamento, por mais simples que este possa ser, há implicações, há reações adversas mil que podem ocorrer e matar o paciente.
Para nós, que fazemos Medicina por amor, o final é o paciente, não é o dinheiro, o sucesso. SOMOS MAL PAGOS E MAL VISTOS E CÁ ESTAMOS SORRINDO PARA CADA PACIENTE QUE AGRADECE O FATO DE NÃO SENTIR MAIS DOR.
Tenho vários amigos em várias profissões e eles são muito competentes, excelentes, crânios, mas afirmo com quase certeza (porque a certeza absoluta é burra) que nenhum deles daria conta de uma jornada de trabalho nossa de oito horas.
Medicina é vida e morte e não há nada mais complexo do que viver e morrer.
Por isso, antes de reclamar dos médicos, de falar que nós nos queixamos à toa, coloque-se no nosso lugar. E perceberam como escrevi na primeira pessoa do plural? É porque eu não me vejo médico sozinho, sou médico com todos os meus colegas que, né, poderiam passar a ter essa consciência de classe.
NÃO SOMOS SUPERIORES NEM INFERIORES, SOMOS MÉDICOS E PACIENTES. Já pensaram como isso é difícil? Se por um lado sentimos a alegria duas vezes, a dor também vem em dobro e continuamos sorrir porque não sabemos fazer outra coisa no final do dia.

Por Francisco Rocha, médico de alma."

domingo, 1 de julho de 2012

Não tenho como te responder...

Imagem retirada de aromais.blogspot.com
Ele seguiu o médico calmamente para detrás do biombo, onde seria realizado o exame físico. Os olhos da sua esposa o acompanhavam parecendo querer segurá-lo para que não caísse. O paciente estava bastante debilitado. Havia passado por algumas sessões de quimio e radioterapia e vinha em acompanhamento. Porém, apresentou alterações no PSA (exame para análise de doenças da próstata). Assim que o percebera fora daquele ambiente, virou para nós, meros estudantes, com seus olhos tão cheios de súplica e perguntou:
- Vocês acham que esse exame alterado é alguma coisa? Será que ele está doente de novo?
Como responder a isto? Nesses momentos é que percebemos duas coisas importantes: não sabemos tanto para explicar aos pacientes/parentes e somos, entretanto, peça fundamental em alguns tipos de atendimento. Algumas vezes os acompanhante não têm coragem de perguntar ao médico (ou este não deixa que eles falem). Daí nos sobra a importante tarefa de fornecer informação de qualidade e de, principalmente, confortar os familiares.
Bem, o fato é que os olhos daquela mulher me fizeram pensar que eu não seria tão capaz assim de responder. ELES TINHAM UMA PROFUNDIDADE DE QUEM TEMIA A RESPOSTA, DE QUEM SABIA QUE A VIDA É EFÊMERA E QUE SEU MARIDO PODERIA PROVAR-LHE ISSOOs acompanhantes dos pacientes, muitas vezes, tem uma carga tão pesada quanto a do próprio doente. Eles podem não ter as náuseas frequentes, dores no corpo ou a perda da acuidade visual, mas sofrem por ver quem ama passar por tudo isso. Alguns deles aguentam o choro, a angústia, o silêncio e a agressividade do seu ente, sabendo que podem apenas apoiá-lo.
Àquela mulher foi dito que mais exames deveriam ser realizados para chegar ao diagnóstico, mas aquilo não bastava para ela, que passaria 24 horas ao lado dele, seu marido, sem saber se ele estava doente outra vez. Então pedi-lhe apenas o que era possível naquele momento, possível para mim e para ela: pedi-lhe para tentar se manter forte porque ele precisava daquela fortaleza, precisava de alguém que o mantivesse de pé.
Ao final da consulta, ela nos agradeceu, um a um, e eu soube que o que podíamos fazer por ela fora feito. E soube que os parentes também precisam desse nosso remédio chamado Atenção!


segunda-feira, 18 de junho de 2012

Com que sentimento me olhava?

Imagem retirada de rabiscandopoesiasrj.blogspot.com

Deu um passinho para trás quando nos viu na sala. Éramos quatro estudantes observando-o entrar. Ainda assim, ao comando do médico, ele entrou. E, por fim, disse que precisava dar uma palavrinha em particular com o médico. "Não se preocupe, Fulano, o que o senhor disser aqui é resguardado pelo sigilo médico", tranquilizou-o o doutor. O paciente olhou-nos mais uma vez, titubeou como se nossas "carinhas juvenis" não lhe dessem a segurança necessária para prosseguir, mas ainda assim sentou-se.
Aquela seria a minha primeira entrevista com um paciente soropositivo e ali estava eu, caneta a postos, estetoscópio pesando no pescoço, o jaleco esquentando... Comecei as perguntas conforme o roteiro: nome, idade, profissão. A parte que eu mais temia perguntar, por provavelmente ter pouco jeito com quilo, era sobre a sexualidade. "Pacientes HIV positivos não gostam de falar sobre como provavelmente adquiriu o vírus", pensava eu. Porém, além da minha clara ignorância em estreitar a transmissão apenas para a via sexual (e os acidentes perfuro-cortantes? E as transfusões? E...?), esta parte da entrevista foi tranquila.
Entretanto, com o passar das explanações do médico acerca da nova vida que o paciente deveria ter ("use camisinha, coma frutas e verduras, faça exercícios, venha periodicamente ao meu consultório"), SEUS OLHOS FICAVAM MAREJADOS E ELE PARECIA QUE IA CORRER A QUALQUER MOMENTO DALI. E eu já não mais falava, apenas o olhava.
Depois de todos os atendimentos, saíamos conversando alto, quatro estudantes que continuariam a vida apesar de tudo o que fora dito e discutido. Quando, de relance, vejo o paciente na porta do consultório. Ainda que passasse repetidas vezes as mão embaixo dos olhos, elas não eram rápidas o suficiente para impedir que a profusão de lágrimas rolasse. Eu definitivamente não estava em condições de consolá-lo, não tinha como eu fazer aquilo, sentia-me absolutamente despreparada. Conversei com minha amiga, que por sua vez foi conversar com ele. Quando retornou me disse "É, ele estava mesmo precisando disso!"

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Série "Outras Impressões": Medicina se aprende com a vida


O quinto texto da série "Outras Impressões" parecia mais uma postagem despretensiosa de Márcio Vinícius Gonçalves Leite no Facebook, porém estava cheia de uma verdade que precisa ser dita: Medicina se aprende com a vida... Márcio é aluno da Faculdade de Medicina da UFC e compartilha conosco suas impressões.

Márcio Vinícius - estudante de Medicina

"Se alguém me perguntasse meu maior desejo eu iria dizer que eu não queria que o tempo me mudasse. Eu não quero um dia me transformar naqueles médicos que tratam as doenças em vez das pessoas.
Quando eu estava no colégio eu achava que a faculdade era o mais importante de tudo. Mas o que a faculdade te ensina é apenas biologia. Medicina se aprende com a vida. E ninguém ensina mais que os pacientes. São eles que te fazem perceber que o médico é antes de tudo um amigo. E que não há dinheiro no mundo que pague um "muito obrigado".
EU AGRADEÇO A TODAS AS PESSOAS QUE AJUDEI ATÉ HOJE PORQUE ELAS FORAM MEUS MAIORES PROFESSORES. E quem quer que precise saiba que pode contar comigo. Sempre."

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Já dizia minha avó...

Imagem retirada de cac-php.unioeste.br
Ouvia aquela voz baixinha saindo da senhorinha frágil. Olhei para o papel onde estava escrito 167x100mmHg e voltei o olhar para ela. Não queria acreditar no que ouvia...

- E Dona Fulana, a senhora cai muito?
- Caiu sim, minha filha. Um dia desses cai de uma escada ali, na minha casa, ai senti um gosto de sangue na minha boca e muita dor. Peguei e coloquei uma xícara de água e coloquei sal dentro e tomei, porque eu lembrei que era bom pra sangramento, essas coisas.

O conhecimento popular nem sempre é o inimigo da saúde, aprendemos muito com os "fazeres populares". Aprendemos que alguns alimentos podem mesmo ser "reimosos" (ainda que não se consiga comprovação científica) e aprendemos que maracujá é um bom suco para quem anda com a pressão alta, apesar de não substituir a redução da ingesta sódica e a tomada da medicação. Mas muitas coisas são feitas que chegam a preocupar-nos.
Lembro-me das inúmeras vezes que discutia com a minha mãe sobre "um ótimo remédio para vomitar": coloca-se cinza quente do borralho do fogareiro em um copo com água fria e toma tudo. Também, quem não vomitaria!?
Meu pai, então, é o primeiro a correr para a cozinha quando os primeiros sintomas de dor-de-garganta aparecem: segundo ele, nada melhor para curar do que uma boa colher de margarina esquentada na boca do fogão ("Bom mesmo é com manteiga-de-garrafa", ele diria!) com meia colher de sopa de sal. Meia colher de sopa de sal!!! Realmente, não sentiria mais a dor-de-garganta porque minha garganta seria corroída e deixaria de existir.
Minha avó mesmo media os "umbigos" dos seu filhos com o galho do peão-roxo e colocava em baixo do pote de água, mas não antes de procurar pela casa um bom botão para colocar no buraquinho da barriga do bebê também para evitar a hérnia. Pois é, e a infecção do coto umbilical?
No dia-a-dia dos profissionais da área da saúde é importante reconhecer alguns "fazeres populares" que podem prejudicar o paciente. LEVAR PARA A REZADEIRA, SIM. E PARA O MÉDICO? TAMBÉM! Assim eu aprendi com meus professores de Assistência Básica à Saúde. Não há nada melhor do que resolver o problema do paciente e, principalmente, ajudá-lo a não adquirir outros problemas. Jamais seremos donos da verdade, e uma crítica que fazemos hoje pode ser a nova opção terapêutica de amanhã. De toda forma, somos obrigados a compartilhar o que conhecemos e incorporar o que de bom nos é oferecido!

quarta-feira, 16 de maio de 2012

A força dos enfraquecidos


O relato que trago hoje fala do que tenho sentido nesses últimos tempos durante as aulas da faculdade...

De tudo o que consegui ver até hoje na Medicina, uma das coisas que ainda continua a me surpreender é o comportamento dos pacientes. É inevitável pensar em como eu me sentiria estando no lugar deles, não apenas pelas inúmeras situações de constrangimento que por vezes narro aqui, não por conta dos percalços que eles têm que enfrentar para conseguir ser atendidos, mas pela doença em si.
É uma questão de ver a doença como um evento, talvez um meio de aprendizado. Isso eles, os pacientes, têm na maioria das vezes. Algumas vezes me pego questionando o que eles estariam sentindo por estar doentes, mas essa pergunta nunca me foi tão frequente quanto agora, que estou conhecendo a Infectologia e a Oncologia (especialidade que trata de pessoas com câncer). Digo isso pelo conceito prévio que havia formulado de que todo paciente quando sabe que está com câncer chora o tempo todo, por exemplo. Tiro essas expectativas das minhas experiências pessoais, que geralmente não condizem com a realidade.
Deparei pessoas convivendo com a sua doença, e não se lamuriando por tê-la. Não foram todos, é fato, mas todas as vezes em que encontro alguém que continua seguindo em frente, apesar da doença, me lembro do dia em que tive "papeira", que me isolei em um quarto e tive pesadelos horríveis por horas seguidas - achei que fosse morrer! E era apenas "papeira"!
Disso concluo que nós, (futuros) profissionais da saúde precisamos pensar mais sobre o paciente. Pensar se ele está sentindo dor, se ele entendeu o que falamos, se ele sabe qual o próximo passo que deve ser dado para resolver seu problema. Devemos pensar nisso e tentar ajudá-los!
***
Por fim, digo que um dos atos mais bonitos que eu vejo em um consultório é que, finda a consulta, o médico/estudante olha para o paciente e pergunta: "O(A) SENHOR(A) TEM MAIS ALGUMA DÚVIDA?"

domingo, 29 de abril de 2012

Vergonha

Imagem retirada de revolucionaria.files.wordpress.com
Entrou como se pedisse licença para existir. Mas não precisava. Quem pedia licença éramos nós, estudantes, compartilhando com aquele senhor a posse da sua doença. Sua filha seguiu com passos mais confiantes. O professor se pronunciou, perguntou-lhe o nome e pediu que se sentasse na maca.
- Seu Fulano, o senhor pode, por favor, tirar a camisa?
Tiritando de frio, o senhor retirou vagarosamente a blusa, os botões teimando em brincar por entre os dedos que sacudiam junto com o corpo. Ele estava envergonhado! E sua vergonha não vinha somente do tom de voz alto e jovial do médico que conflitava com os nossos olhares apreensivos. Não vinha somente do fato de ter corrido a vida assim, hígido e confiante, e, de repente, encontrar-se precisando de ajuda. SUA VERGONHA VINHA TALVEZ DO FATO DE SUA DOENÇA SER TÃO ESTIGMATIZANTE E QUE, PARA CHEGAR ALI NO CONSULTÓRIO, PASSARA ANTES POR DIVERSOS OLHARES CURIOSOS, ÀS VEZES PRECONCEITUOSOS, que viam sua pele toda descamando e não sabia do que se tratava.
Sobre o vermelho intenso de sua pele que queimava, milhares de casquinhas brancas se soltavam. "Eritrodermia!", cortou o silêncio novamente, com seu tom de voz jovial, o professor. A filha olhava com atenção para o médico, esperando talvez a palavra mais ansiada nos consultórios, ambulatórios e hospitais: "cura". Esperou, esperou, esperou... e o médico nos contava de que se tratava aquela manifestação, o que sentia o paciente, quais medicações deveriam ser prescritas.
E, indiferente à espera de sua filha, ao conhecimento vasto do médico e aos olhares curiosos dos alunos, o senhor se calava em toda a simplicidade que a doença pode nos trazer. Calava um silêncio que me gritou aos ouvidos: ele sofria!

sábado, 17 de março de 2012

Quando não se satisfez sua vontade...

Imagem retirada de 4.bp.blogspot.com
A voz alterada no consultório contíguo chamou atenção. Parecia alguém que brigava consigo mesmo, já que a outra voz - a que respondia - estava tão baixa que mal ouvíamos. Nós, curiosos, fomos à sala para ver do que se tratava. Encontramos o homem questionando, transtornado, porque a estudante não escrevia logo um atestado dizendo que ele estava doente por causa do estresse do seu trabalho.
- Mas senhor, eu não posso escrever isso. Isso é só uma hipótese sobre a doença.
- Mas você disse que o estresse POOOODE causar isso, não disse? Então escreva!
E completou
- Como é mesmo o seu nome? – olhou no jaleco – Ah! Fulana de Tal! Olhe, Fulana de Tal, você é tão bonitinha, mas a sua ética é feia!
A estudante olhou para a médica, que acabara de entrar na sala. Contou-lhe a história, interrompida várias vezes pelo homem. A médica ouviu, olhou-o e saiu. O HOMEM CONTINUOU O INQUÉRITO. OLHAVA NOS JALECOS OS NOSSOS NOMES E NOS PERGUNTAVA DIRETAMENTE SE ELE TINHA RAZÃO OU NÃO. Perguntou para os meus colegas e por fim, chegou a minha vez...
- É... Au... Audinne, me diga, você como médica não me daria um atestado dizendo que estou doente? Não é o meu direito como paciente, não?
- Daria sim...
- Tava vendo??? – gritou ele, interrompendo a minha fala.
- Daria um atestado dizendo que o senhor está doente, mas não colocaria que é por causa de estresse, já que não há como provar isso.
Ele me olhou sem dizer nada, afinal esta opção faria apenas a metade do que ele queria: queria um atestado que permitisse que ele se aposentasse alegando doença laboral. Mas não havia como provar isso! A médica retornou, dizendo que ele faria um tratamento lá mesmo, com outro profissional.
Ele ficou na porta, cercando-nos por algum tempo. Parecia decidido a conseguir o atestado. Bem, depois saiu, mas aquilo ficou na minha cabeça: "você é tão bonitinha, mas sua ética é feia". Decerto, um julgo incorreto... muito incorreto!


quinta-feira, 15 de março de 2012

Um caso de amor

Imagem retirada de http://portal.saude.gov.br
"DOI DEMAIS. ESQUECER DOI DEMAIS"
"E não é que doi mesmo?", pensei e imaginei como eu reagiria em uma situação dessas...
***
Um homem feito (como se diz popularmente), quase às lágrimas, contava a sua trajetória para a gente. Dizia do tempo em que passeara por diversos locais e nos fazia inveja com a sua memória de computador.
- E quando foi que o senhor fez isso, Seu Fulano?
- Foi no dia 19 de novembro de 1958 - falava assim, como se falasse do que comeu naquela manhã.
No decorrer da consulta, o seu principal problema estava exposto. A separação de sua mulher o corroia por dentro e, saudável que sempre foi, estava agora triste, com o choro fácil e tomando mais medicações.
Em um dado momento, ele disse sobre a separação:
- A gente ia fazer 60 anos de casados, mas eu considero mais porque eu conhecia ela antes... Falava com ela de manhã, antes de sair pro trabalho; à tarde, quando voltava para almoçar; e quando voltava à noite... EU VIVI QUASE A MINHA VIDA TODA AO LADO DELA. É muito sofrimento.
Nesses instantes, o seu olhar se perdia numa vastidão de cenas que decerto passeavam em sua mente, em uma valsa constante e ensurdecedora. Ele havia se desfeito de muita coisa para esquecê-la. Doou os bichos de estimação e o primeiro presente que comprou para ela. Mudou a rotina. Pediu ajuda do filho. Mas parecia tratar-se de uma doença da qual a Medicina ainda não conseguiu medicar: a saudade. Aquela saudade que doi fininho no coração e não nos deixa agir. Aquela que vem, se instala e dita quais serão as nossas ações, os nossos pensamentos e até os nossos sonhos. A saudades que não nos deixa dormir...
- Como está o sono, Seu Fulano? Tá dormindo direitinho?
- Não, tô não. Eu deito na cama e fico vendo TV. Dai, quando o sono vem eu me ajeito na cama, mas não consigo dormir.
Tudo isso depois que ela saiu de casa. Falou da desilusão, que estava se sentindo abandonado por quem mais queria bem. E, lá pelas tantas, disse uma verdade que nos mostra o quanto o nosso egoísmo nos deixa doentes e que me permitiu entender muito dele, de mim e de tantas outras pessoas...:
 "A contrariedade dá um mal-estar muito grande na gente"
E como o amor doi... como doi!

sábado, 10 de março de 2012

O dia em que errei

Imagem retirada de damien-antimatter.blogspot.com
Os atendimentos seguiam normalmente. Adolescentes e idosos eram atendidos e, por fim, o doutor-professor os via. Eu já havia ouvido falar em transferência e contra-transferência no atendimento médico. É mais ou menos quando o paciente deposita suas experiências de vida no médico e o médico deposita as suas de volta, podendo ser positivas (como quando uma paciente lembra sua vovozinha boazinha) ou negativas (quando ele lembra aquele seu vizinho insuportável). Porém, ainda não  havia acontecido comigo... até aquele dia.
Sentou-se à minha frente. A sua forma de agir não diferia em nada dos demais atendimentos daquela tarde. Apresentou um pacote de folhas, exames novinhos nos foram entregues. "Trouxe para mostrar pro doutor", disse olhando além de onde estávamos, olhando para o Doutor que estava em outra mesa logo atrás da gente, ocupado com outros pacientes. A minha colega perguntou se ele tinha pressão alta e diabetes.
- Foi pra isso que eu fiz o exame, pra saber se tenho 'diabete'.
Analisamos o exame e, de fato, ele tinha diabetes. Perguntei se sua consulta estava agendada no posto de saúde, para o dia seguinte (como havia me confirmado a agente de saúde). Ele disse que não, 'que isso e aquilo'. Em resumo: queria ser visto pelo doutor, e HOJE.
Perguntei ao médico qual seria a prescrição, na outra mesa. Quando voltei com a resposta, o paciente perguntou se o médico não veria o exame. Levei o exame ao médico, que me repetiu o que fazer.
- Ele tinha passado um remédio para mim quando me viu da outra vez - disse o paciente.
- Era um remédio grande, ... Metformina? - perguntei, já que ele não havia trazido a receita.
- Não, é um roxo, pequeno.
- Roxo... roxo... Será que é o Captopril? - pensei alto, enquanto tentava adivinhar de que medicação ele estava falando.
- Captopril é para pressão, menina! - FALOU DE MANEIRA QUE ME PARECEU DUVIDAR DE QUE EU SABIA PARA QUE SE PRESCREVIA AQUELE MEDICAMENTO.
A consulta não foi nada agradável. Difere em muito dos relatos que sempre trago a vocês... MAS EU PRECISAVA CONTAR COMO ERA UM ATENDIMENTO QUE NÃO DEU CERTO. O objetivo foi alcançado - ver os exames e medicar corretamente o paciente - mas os MEUS objetivos não foram! Sai de lá frustrada, como se os demais atendimentos do dia não houvessem sequer ocorrido. Esqueci da menina-triste e da vovozinha-que-voltou-a-estudar. Apenas aquele erro importou ao fim do dia: o dia em que não atendi corretamente, que a empatia não foi alcançada!


domingo, 4 de março de 2012

Em um mundo só seu

Imagem retirada de osconselheiros.com

Demência. Não conhecia a face dessa doença até aquele dia. Ou melhor. Conhecia em grau leve ou em livro, o que nunca é igual a deparar quem sofre. No consultório apertado, seis estudantes esperavam ansiosos seu primeiro atendimento, quando entrou aquela família. Um homem, bem idoso, caminhava com alguma dificuldade, como se houvesse esquecido que, depois de por o pé direito à frente precisava trazer o esquerdo em seguida, para andar. A filha trazia no rosto a aflição de quem passou algumas noites em claro. A esposa trazia no rosto a tristeza.
No desenrolar da consulta, histórias surpreendentes eram narradas por aquelas senhoras. Histórias de alguém que teima para vestir-se, que esquece como engolir a sopa, que não pode mais estar sozinho em casa. Visivelmente alterada, a esposa disse-nos “EU NÃO CONHECIA ESSA DOENÇA, MAS É A PIOR DOENÇA QUE JÁ VI NA VIDA”. Doença de nome estranho, já há muito aprendida por aquelas duas mulheres simplórias: Alzheimer. A esposa olhou-nos com uns olhos muito vivos e marejados:
- Tô com meus olhos que quase não enxergo mais de tanto chorar – disse-nos, entregando-se às lágrimas.
Porém, mais surpreendente ainda foi ver que ele, o paciente, diagnosticado com “o alemão” (como dizem popularmente sobre a Doença de Alzheimer) estava, sim, percebendo algumas de nossas ações, chegando a interagir em alguns breves momentos e julgar em outros.
- Doutor ... vou lhe dizer uma coisa ... o senhor esqueceu ... – balbuciavam aqueles lábios já riscados pelas linhas do tempo - ... o senhor esqueceu a parte de olhar.
Ele realmente estaria reclamando do médico que, mesmo dizendo “pode falar, seu Fulano, estou escutando”, continuava escrevendo, sem olhar para ele? Ademais, o senhorzinho falador continuou:
- A gente tem prazer ... de ver assim, 4 ... 5, 6 doutores ... dando duro num serviço ... desse aqui.
Não sei se me surpreendi mais com a situação dos familiares, já calejados dos dias e noites tentando dar os remédios, colocar para dormir; ou foi com o olhar de filha que reconhece o pai, ainda que por detrás do Alzheimer; ou se foi com aqueles rompantes de clareza, como se se lembrasse da lucidez encoberta pelos dez anos de doença. Não sei.
E, depois, o senhor continuou a nos contar dos cavalos do seu tempo de menino e a pegar pequenos objetos imaginários que teimavam em cair no chão.


sábado, 3 de março de 2012

Diagnóstico difícil

Imagem retirada de grande-distracao.blogspot.com


Cheguei esbaforida da faculdade, cumprimentei-a e perguntei como estava. Ela disse que tudo bem, que tinha feito ontem mesmo o teste ergométrico (teste em que o paciente caminha em uma esteira enquanto são acompanhados alguns de seus parâmetros). O médico tinha dito que estava tudo bem:
- Eu só gostaria de saber o que que é “sugestivo de isquemia do miocárdio” que deu no meu exame.
“Isquemia do miocárdio”? No pensamento, como um grito ensurdecedor, aquelas palavras fechavam o diagnóstico: ela estava infartando no momento do exame! Como dizer que, apesar de o médico ter dito que estava tudo bem, ela estava com algumas porções do coração morrendo? Lembrei do seu filho, primeiramente. EU NÃO PODERIA FAZER AQUILO, AINDA NÃO ESTAVA PREPARADA PARA DAR ESSE DIAGNÓSTICO, E PARA ALGUÉM TÃO PRÓXIMO. Pedi-lhe que fosse pegar o exame e usei esse tempo como refúgio. Em minha cabeça, centenas de sentimentos choviam e lavavam a minha racionalidade. Como dizer?
Entregou-me os papéis com suas mãozinhas delicadas, dizendo que ainda estava com os braços meio doídos do exame. Abri e comecei a lê-lo:
CONCLUSÃO: não apresenta alterações no seguimento S-T    sugestivos de isquemia do miocárdio
- Não, aqui tem “não apresenta alteração”.
- Mas e essa parada antes do sugestivo? Não é outra frase, não? – falou apontando para a distância proporcionalmente grande entre “S-T” e “sugestivos”.
Não conseguiria descrever o alívio e felicidade que me deu em saber que, na verdade, as alterações sugestivas de isquemia NÃO estavam no exame. Agora, contando-lhe isso, percebi o sentido em se reforçar tanto a importância de uma boa escrita: uma vírgula pode mesmo mudar muita coisa!

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Homem Vulnerável

Imagem retirada de foz9.wordpress.com

Entramos na enfermaria e um odor desagradável irritou-me as narinas. O café-da-manhã embrulhava no meu estômago e parecia fazer toc-toc em uma porta, pedindo para sair. Concentrei-me na cena: dois homens deitados nos leitos da Urologia, sem acompanhantes, pareciam recém-acordados de uma noite bem dormida. O que estava mais próximo recebeu a todos com um sorriso aberto. O doutor que o acompanhava perguntou cordialmente como ele estava e se já estava ansioso com  a cirurgia que seria dali a pouco. Na enfermaria, um outro paciente observava a movimentação. O médico solicitou que ele saísse por alguns instantes, ao que ele concordou prontamente, levantando-se e fechando a porta atrás de si. Achei estranha a atitude, já que, de rotina, atendíamos a todos os pacientes perante os demais, sem cerimônias.
O doutor perguntou-lhe se sentia alguma dor e se poderia mostrar a região do tumor para os alunos.
- Vocês sabem o que é tumor de Buschke-Loewenstein?
Minha colega e eu nos entreolhamos. Ela disse que já ouviu este epônimo, porém não se recordava do que se tratava. O paciente baixou o short e mostrou o grande tumor nas partes íntimas, mantendo ainda o mesmo sorriso com que nos recepcionou. Disse que não tinha vergonha, afinal estávamos todos lá para aprender e em breve estaríamos salvando vidas...
"Salvando vidas", ESSAS PALAVRAS AINDA ECOAM AQUI NA MINHA CABEÇA, GIRANDO E GIRANDO COMO SE PROCURASSEM O SENTIDO EM TUDO ISSO. Um homem exposto, vulnerável, desprendido de seus pudores para salvar sua vida e nos ensinar: ensinar que não levamos nada da vida, a não ser o que de bom fazemos aos outros, o que nos faz ter a certeza de que nossa vida não é desprovida de sentido.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Nada de massas!

Imagem retirada de cliquebeleza.net
Sentada na porta de um consultório, fiquei esperando o horário de "trabalhar". Uma porção de carrinhos róseos ou azuis passavam para lá e para cá. Gritinhos e risinhos eram ouvidos a todo momento. Quando me dei conta, vários bebês e suas mães estavam por todos os lados.
É engraçado como cada mãe quer, precisa falar de suas experiências, do que viveu com aquele pequeno ser que deu certo, do que aprendeu com outras pessoas. Ficando ali, ouvi - sem ser convidada - de tudo um pouco. Em dado momento, uma delas estava se vangloriando por sua filha comer muito bem e dormir melhor ainda. Ela disse, então:
- Ah! Aveia ela adora. Quando ela termina, até pedir mais, ela pede.
Olhei para aquela pequenina, rosadinha e fortinha, e lembrei-me das horas e horas na aula de pediatria e das centenas de vezes que ouvi que criança com menos de 6 meses não deve tomar outra coisa que não leite materno e que, após isso, alimentos leves devem ser introduzidos na alimentação. Nada de massas! Lembro ainda das centenas de artigos publicados, respaldando as nossas recomendações. Nada de massas! Então me pergunto como anda a nossa comunicação com as mães, e mais: ATÉ QUE PONTO TEMOS PROPRIEDADE PARA DAR CERTAS RECOMENDAÇÕES? Geralmente, quando converso com as puérperas, elas me olham "de lado", desconfiadas. "Como essa 'criança' quer me dizer o que fazer", devem pensar. E assim seguiram as conversa, uma após outra, "desrespeitando" as nossas ordem, criando bebês fortes e rosados, dando continuidade ao curso da vida.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Toda mulher é igual

Imagem retirada de donaoncinha.com.br
Levantou a pequena blusa e mostrou a barriguinha roliça. "Cadê a manchinha? É essa aqui?". A menina faceira sorriu e disse que era essa, mas tinha outra. A mãe disse que ela mostrasse a mancha maior e a pequenina se virou, deixando a mostra um branco que parecia um pedaço de uma aquarela retirada das mão de um pintor. A mãe nos olhou interrogativa. Analisamos, friccionamos, colocamos luz. Vimos e revimos aquela pequena mácula no corpinho da criança. Ela já havia sido avaliada por uma dermatologista que lhe prescreveu uma medicação, mas não orientou a mãe, não lhe disse do que tratava e tão pouco dispendeu ao menos 2 minutos no atendimento. Perguntou à mãe se ela poderia pagar uma medicação de 70 reais. E depois perguntou se ela poderia pagar uma de 90 reais.
- POXA, DOUTORA. ELA É MINHA FILHA, EU TERIA QUE DAR UM JEITO. FICAR PERGUNTANDO SE EU POSSO PAGAR ISSO OU AQUILO EU DARIA UM JEITO!!!
Mas o que lhe preocupava deveras era o fato de a "doença" da filha ser para sempre, de ela ficar diferente da idealização que as mãe fazem: o filho perfeito, sem manchas, com todos os 20 dedos, educado, esforçado e que todos adoram! Quando penso nisso, lembro do que minha mãe sempre me dizia quando eu ficava horas na frente do espelho, inumerando as dezenas de defeitos que eu encontrava: "Não diga isso, você é perfeita. Você não sabe o quanto eu rezei para que Deus fizesse você assim". Aquilo estava longe de me consolar na época, e hoje, em frente àquela mãe, tive a certeza que a sina de muitas mãe é se desgostar em ouvir as reclamações estéticas de suas filhas... e com aquela mulher não seria diferente, independentemente de ficar apenas naquela manchinha ou não.
Como o provável diagnóstico (uma doença estética, mas que poderia evoluir com manchas em todo o corpo da criança), a mãe se mostrou bastante triste. "Deus que me perdoe, mas preferia até que fosse essa tal de hanseníase, pelo menos tem cura". Dissemos que ela também poderia usar medicações para estabilizar a doença, sem falar na possibilidade de a doença não evoluir por si só, mas eu sabia, independente do desfecho, que aquela mãe passaria pelo mesmo problema de tantas outras mães: convencer sua filha de que ela é linda, dentro da perfeição que é o ser vivo.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Rebelde com calça!

Imagem de media.photobucket.com
Adentrou o consultório nos olhando de cima a baixo. Nós, duas estudantes, estávamos encarregadas de ouvir os pacientes e repassar a história para a médica, que concluiria o atendimento. Aquele olhar dizia, ou melhor, gritava um "QUEM SÃO VOCÊS PARA ME EXAMINAR?", mas demos início ao atendimento. A adolescente relatou o que a trouxera ali e nos contou de sua ida frustrada a uma dermatologista. Anotamos os dados e exploramos um pouco mais a história da ida à outra médica, ao que ela disse que seu problema fora negligenciado e que a profissional havia dito que trataria disso em outro momento, depois de tratar das espinhas.
Quando a médica entrou no consultório e repassamos o caso, a adolescente mais uma vez disse do seu desagrado com a outra profissional e que não aguentava mais ficar em fila de espera de posto de saúde, que não tinha paciência para isso. Como estávamos rastreando doença dermatológica, a médica solicitou que ela se despisse para verificar se havia alguma mancha em seu corpo e ela olhou por detrás da franja, com a cabeça baixa e os olhos vivos, bem levantados e falou "O que?!". A médica repetiu a solicitação. Ela:
- Não, todo dia eu me olho no espelho, não tem mancha nenhuma não!
- Mas é necessário que a gente avalie, a menos que você realmente não queira - disse a médica.
- Eu não quero, não precisa - disse a adolescente e "ponto final"!
Eu e minha colega estávamos irrequietas com a situação. Não bastava o seu olhar ao entrar para nós duas, meras estudantes, depois essa recusa e, por fim, ainda disse que não tinha saco para ficar esperando atendimento em fila de posto. Fiquei pensando na história já batida do Pequeno Príncipe, quando é dito que é necessário cativar as pessoas/coisas. Pensei em como seria importante que aquela adolescente sentisse mais segurança em nosso atendimento para que se deixasse examinar e que se desarmasse. Seria essencial cativá-la para que ela pudesse ser efetivamente atendida.
Entendo que não é possível "cativar" a todos, mas é bem possível tentar. QUANDO ELA SAIU, FIQUEI COM UMA SENSAÇÃO DE TAREFA NÃO CUMPRIDA, como se me mandassem catar rosas e eu só achasse papoulas!

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Solidão em uma casa cheia

Imagem retirada de flickr.com
Como não perceber algo que me gritava aos olhos? Um por um, do mesmo jeito, as mesmas características: idosos que vinham para a consulta de rotina, trazendo suas receitas já muito gastas e suas angustiantes histórias de vida. Um ou outro nos trazia um sorriso escancarado de quem "tem quem me cuide" ou de quem "ele próprio pode muito bem se cuidar, obrigado(a)!". OS DEMAIS TINHAM SEMPRE AQUELE ASPECTO DE LÁGRIMA POR ESCORRER ENTRE AS RUGAS, o que me afligia por não ter seguido a antiga recomendação de Alfred Benjamin, em "Entrevista de Ajuda", que recomenda que o bom profissional deve sempre trazer lenços para os pacientes.
Destes, uma senhora me chamou atenção. Já havia atendido-a em outra oportunidade, lembrava inclusive de seu problema de saúde e de que era poliqueixosa (como se diz dos pacientes que nos trazem centenas de problemas de saúde). Perguntei sobre o uso dos medicamentos, ao que ela disse que usava bem direitinho. Após algum tempo de conversa, ficou claro que ela usava direitinho quando lembrava. Não tinha ninguém em sua casa que pudesse ajudá-la nisso, além de que ela mesma afirmava esquecer inclusive de comer, chegando a servir seu almoço e simplesmente voltar na cozinha, lá pela hora do lanche, e encontrá-lo intacto como havia deixado. Falou que seu marido era quem estava cozinhando e que não conseguia comer aquelas coisas verdes que ele colocava no prato. Carne? "Ingüiava" só em mencionar...
Contou-nos ainda dos problemas de insônia e de como seu filho chegava bêbado várias noites, importunando seu sono.
Soubemos que a sua rua era muito perigosa e que ela passava a noite quase toda de vigília, esperando pelo pior da janela de casa, com medo, muito medo.
Quem olha pelas milhares de senhoras e senhores que dedicaram suas vidas aos filhos e que estes lhes abandonam (literalmente ou psicologicamente)? Algumas vezes é tão doloroso atender pessoas que você sabe que poderá fazer pouco por elas. UM REMÉDIO NÃO PODE ORGANIZAR A VIDA FAMILIAR E ISSO É UM TAPA NA NOSSA CARA; É UM "VOCÊ SÓ PODE FAZER ISSO?" QUE NOS ENCHE DE UM VAZIO. Tenho consciência de que uma palavra com essas pessoas pode ser muito gratificante para elas, mas não me parece ser suficiente.
A doutora que nos acompanhava conversou com o agente comunitário da rua dela e pediu que ele ajudasse no controle da medicação, passando pelo menos uma vez por semana na casa dela para contar os comprimidos. Nós, estudantes, fizemos uma tabela e juntamos as medicações, para que ela pudesse lembrar de todas. Uma gota no oceano que espero tê-lo tornado um pouco mais cheio!