segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O meu Silêncio

Imagem retirada de mensagens.culturamix.com/

Há quase sete meses eu vinha em um silêncio literário. Nenhuma palavra, nenhum novo relato. Não que eu não tivesse aprendido nada; não que eles, os pacientes, não continuassem a me ensinar mais e mais. Era um silêncio meu, a vida que nos consome. Então tive a pretensão de resumir esses dias silenciosos, mas de antemão sei que não terei como conseguir. Não tenho como falar de cada um deles e de seus ensinamentos assim, de supetão. Mas posso falar do que estive aprendendo esses dias.

...

Há alguns meses estive doente, bem doente. E pude ver como achamos sempre que somos fortes demais até que nos vemos dependentes. Mal pensamos na fragilidade da vida até que vemos que "não é bem assim". Ademais, ESSES DIAS COMO "PACIENTE" ME ENSINARAM COISAS QUE NÃO TINHA LIDO NO ROBBINS, NO PORTO OU NO HANG&DALE. Em nenhum deles me dizia que eu iria chorar por não poder mudar o rumo dos sintomas ou que eu não dormiria por noites seguidas. Mas um paciente me diria isso tranquilamente. Não, não estou desmerecendo as grande referências da Medicina, elas são ainda importantíssimas para nós, eternos acadêmicos. Entretanto, os nossos maiores aprendizados são com aqueles a quem devíamos sempre ouvir, calmamente perguntar o que eles tem a nos relatar...

Aprendi ainda nesses dias de silêncio que tem pré-julgamentos que estão tão entranhados em nossas mentes que sempre precisamos nos policiar para não voltar ao velho julgo. Como naquele dia em que eu estava sentada no banco, duas e meia da madrugada, olhando uma paciente de quinze anos a gritar, e gritar, e gritar pedindo para tirar aquela dor dela, que resolvesse a gestação agora, "Tira isso de mim", ela dizia. O que você pensaria nessa hora? Quantas vezes não foram repetidas as frases "Pra fazer foi bom" naqueles corredores, quantos olhares de julgamento ela não recebeu ao entrar nos ambulatórios, ao pegar a fila preferencial, ao entrar pela frente no ônibus. ELA CHAMOU SUA MÃE, PEGOU SUA MÃO E COLOCOU JUNTO AO SEU ROSTO. "Pede pra eles tirarem logo, mãe". Aquela senhora olhava para mim, olhos marejados e eu, covarde, desviei o olhar para o display do cardiotocógrafo.

Quando o exame terminou, depois de tentar explicar, em vão, para a paciente que tudo corria conforme o esperado, aquela mãe ainda me olhava em desespero. Chamei-a e expliquei ainda outra vez o que já havia dito - exames normais, tudo dentro do esperado. Mas aquelas não eram as palavras que ela queria ouvir, para ela só importava que sua filha não sentisse mais a dor.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Sorrisos e momentos na tela

Imagem retirada de vampir.com.br
A sinfonia do violino atinge de cheio o silêncio que estava no meu quarto fazendo-me repetir, ainda que eu não quisesse, o refrão enjoativo do Roberto Carlos. "Como é grande o meu amor por você". Não bastasse a aversão que naturalmente essa música me causava, veio em mim a lembrança de uma manhã que eu gostaria de esquecer. E como são engraçadas as lembranças, são como crianças teimosas pedindo doce às mães - você não pode ignorá-las. Então essa criança começou a espernear dentro de mim, não me deixando esquecer a repulsa que o refrão me causava.
Era dia de visita domiciliar, então havíamos saído bem cedo para ver os pacientes. Geralmente os pacientes do programa de visita são os mais complicados, alguns incapacitados de ir ao posto por diversas questões de saúde. Naquele dia, eu já estava sobrecarregada da visita anterior em que uma paciente com problemas mentais encontrava-se em uma situação precária. O sol e o calor nos castigava enquanto esperávamos que viessem abrir a porta. UM HOMEM ABRIU-A E NOS OLHOU A TODOS COM UM OLHAR IMPACIENTE, QUANDO A MÉDICA ANUNCIOU A QUE VIEMOS.
- Viemos conversar com o senhor, Seu Fulano, podemos entrar?
Ele esperou ainda alguns segundo, que me pareceram uma eternidade naquele sol fustigante. Afastou-se e permitiu que entrássemos. Perguntamos da sua saúde e as respostas vinham lentas, como se o tempo se houvesse dilatado e tudo passasse devagar. Não havia cadeira para todos e, a sala pequena, era preenchida na metade pela viva luz do sol que destoava da tristeza que o semblante do homem carregava. Ele nos disse, por fim, que nada estava bem. Havia perdido seu filho a poucos dias (três? cinco?) e nos mostrou a homenagem registrada em seu corpo que fizera para ele - apontando para o rosto bonito tatuado em seu corpo, dizia que ele não era ladrão, que era "moço bom", trabalhador. DISSE QUE ESTAVA MEDICADO PORQUE NÃO ESTAVA SUPORTANDO A DOR  DE TÊ-LO PERDIDO E DISSE QUE A SAUDADE ERA GRANDE. De repente, como se lhe houvesse soprado no ouvido, levantou rapidamente e perguntou-nos se queríamos saber como ele passava aquelas horas em que ficava sozinho, relembrando o filho. Então colocou um vídeo para assistirmos. Desde o início, eu sentira que aquele vídeo não podia fazer-lhe bem, mas quando o violino harmonioso introduziu a música como que uma fina lança me percorreu a espinha. "Como é grande o meu amor por você" dizia o verso que fora repetido mais que vinte vezes, uma música que começava e terminava, começava e terminava, e as fotos que traziam sorrisos e momentos que não voltariam. Pus-me entre a porta e o televisor para não ver as imagens, mas a música ainda vibrava e vibrava dentro de mim, reavivando a dor de um pai que perdeu seu filho no auge da vida. E OS MINUTOS INFINDOS DE SOL NAS COSTAS, PERNAS DOENDO, SEDE, CALOR SOB O JALECO SE SOMAVAM AOS ROMPANTES DO CHORO CONVULSIVO DAQUELE PAI. Lágrimas estavam correndo tímidas pelos olhos dos muitos expectadores, enxugando-as rapidamente, secando-as na calça discretamente. E o pai que soluçava, soluçava como se ritmasse "Como é grande o meu amor por você"...