quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Os tão grandes olhos marejados

Imagem retirada de primeirahora.com.br
Já havíamos comentado o caso dela, discutido e rediscutido. Dez alunos e um professor, todos apertados nos jalecos brancos, os pés latejando pelas horas passadas em pé. Doze leitos com pacientes de diferentes idades, a grande maioria desacordada, e máquinas e mais máquinas apitando e piscando para nós. Olhei de lado pois um barulho me distraía. Toc toc toc tac tac, insistia o barulho. Quando virei em direção a ela o barulho aumentou de frequência e percebi que a senhora fazia um esforço grande para chamar a atenção de alguém. LEMBREI DO DIA QUE O DOUTOR TINHA ME DITO QUE O PIOR DE SE ESTAR ENTUBADO E AMARRADO (para não retirar o tubo de respiração da boca) DEVERIA SER AQUELE MOMENTO EM QUE COMEÇA UMA COCEIRINHA TEIMOSA. Coçando, coçando e você não pode coçar. Caminhei rapidamente até a senhora pensando que, se fosse a tal coceirinha teimosa, eu teria que pedir autorização ao médico para tirar as amarras que a impediam de retirar o tubo orotraqueal.
Quando a senhora percebeu que me aproximava dela, abriu para mim uns tão grandes olhos marejados que eles por si só pareciam pedir desesperadamente ajuda.
- Dona Fulana, o que aconteceu? Está precisando de alguma coisa?
Os olhos cada vez mais abertos e ela tentou balbuciar algumas palavras. Não, o tubo não deixaria ela me dizer o que queria e eu fiquei preocupada em ela achar que tinha perdido a voz.
- Dona Fulana, a senhora está com um tubo na boca, está percebendo? - ela fez que sim com a cabeça, ainda me olhando aflita - Ele está ajudando a senhora respirar. Ele também dificulta a senhora a falar, mas quando a senhora ficar melhor e conseguir respirar sem o tubo, voltará a falar, não se preocupe. Agora tente falar devagar o que a senhora quer.
- Á-gua Á-gua Á-gua... - ficou repetindo para mim.
Quando voltei com a água e expliquei que ela não conseguiria tomar, mas que eu molharia uma gaze e colocaria na boca dela, ela fez um sinal afirmativo com a cabeça. Um gole de água na gaze, outro gole de água na gaze. Assim, gole após gole, os seus olhinhos iam mostrando uma expressão mais calma. Disse que tinha que me ausentar por causa da aula, mas que ficaria ali o dia todo, caso precisasse.
Então, ouvindo o caso do outro paciente, sentia ainda pesar em mim os tão grandes olhos daquela idosa, olhos que carregavam uma história e que talvez nem estivesse entendendo ao certo o que eram todas aquelas máquinas piscando e todos aqueles indivíduos de branco, olhos que me seguiram durante toda a explicação do médico...