terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Série "Outras Impressões" - Ainda é cedo demais


Estou dando início a uma série de textos de outros colegas (alunos da turma 2014.2 da Faculdade de Medicina da UFC) que têm algo a compartilhar do que aprenderam com os pacientes nesse ano (2010). O primeiro texto é de Urian Amorim Pontes, que retrata as suas impressões ante um paciente que tinha uma prognóstico dito "sombrio", de câncer com metástases hepáticas. Em uma escrita poética, ficam claros os confrontos que cada aluno trava consigo mesmo...

Urian A. Pontes - estudante de Medicina


"Eu tinha que estar sério diante da séria situação daquele senhor. Com ele sorrindo, diminuindo o arco senil pela elevação das bochechas que encobriam, parcialmente, seus olhos azuis. Eu estava certo de não executar nenhum Lemos-Torres, de não triscar em qualquer milímetro do seu alvo e álgico tegumento. EU PISAVA EM ESPINHOS DO JARDIM DAQUELE PACIENTE. Com o meu esteto teimando em cair, eu roía as unhas pensando em um bilhão de perguntas. E me distraía com a fatalidade de seus dias de péssimo prognóstico.
As colegas adentravam a um terreno tenebroso que se intitula anamnese. Entre cada arrumada de cabelo, as têmporas do paciente enrubreciam-se com cada nuance feminina impressa na enfermaria. Era um exercício de vida, porque sexo é sexo até nos últimos minutos da carne. Eu registrava cada percepção daquele local. Qualquer bolha construída de ações e reações incautas eram por mim colhidas, num papel que exacerbava o check-list da matéria, mexendo, tolhendo meus atos, patinando sobre as minhas convicções aberrantes de aluno decidido e pouco cartesiano. Acontece que o fôlego do paciente era demais para o seu estado. E, ali, todos arrotavam seus desejos instantâneos, numa situação inédita de transição.
Alguém me pegava de surpresa e me deixava em maus lençóis. Talvez eu confeccionasse um mecanismo de defesa do tipo imaturo para brincar com o meu próprio ego. Se o seu fígado tivesse jeito, decerto eu não estaria ali, no mais lúgubre labor de aluno-coveiro, deslizando em ondas verdes e rubras de bile e sangue, que, em átimos, apareciam no pensamento cruzado de todos os presentes. Visitávamos a morte. E havia espelhos de vida ao nosso redor.
Pena que a minha saga de médico começara ali, e eu mal notava. Eu estava comendo azeitonas pretas na situação amadora que escolheram para eu descascar. Sem opção  para não elaborar caras e bocas, na paisagem pálida que me ensinaram a esboçar rudemente, diante de qualquer amargura que pudesse me habitar. Era um transe que necessitava, sobretudo, de experiência. Sei que abnegação nem vontade faltavam, mas HÁ SEMPRE O BENEFÍCIO QUE SE CONSEGUE DEFRONTE A UMA ENTIDADE INESPERADA QUE SE CHAMA 'ROTINA DE JALECO BRANCO'.
Aprendi que o silêncio é arma tão poderosa quanto à língua. E é exatamente sob o silêncio que se colhe o que pode haver de mais íntimo n’outro. Abri gavetas invisíveis. Procurei feito detetive as marcas que faziam o jogo ficar interessante. E ficou. Não esperei alguém dizer ‘Il est encore trop tôt’, diante de um ser quase-médico. Eu caí. E levantei. Mesmo sabendo que ainda é cedo demais."

4 comentários:

  1. URIAN, "......poderosa quanto À língua." QUE CRASE É ESSA,TEMOS QUE TER UMA AULINHA DE GRAMÁTICA, vou tentar ti ensinar alguma coisa....hehehe
    "quanto" não rege preposição , apenas artigo.

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  2. Infelizmente não, mas vou sugerir a ele e assim que ele aceitar, colocarei a dica aqui ao lado...

    ♦ http://pacientesensinam.blogspot.com ♦

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