domingo, 20 de janeiro de 2013

Traçando o caminho

Imagem retirada de ecofuturo.org.br
Havia chegado o dia de conversar com a família sobre a situação em questão: a matriarca da família encontrava-se prostrada no leito e com o recente diagnóstico (desconhecido por ela) de um câncer metastático. Todos nos dirigimos a um ambiente a parte, em que pudéssemos conversar sem que a paciente ouvisse. Seria uma decisão difícil para a família, e era a primeira vez que eu lidava com uma situação daquelas.
O preceptor começou explicando o caso. Disse que se tratava de um provável diagnóstico de câncer e partilhava daquilo com os familiares para que decisões fossem tomadas: investiriam em diagnóstico que poderiam ser fisicamente dolorosos para a paciente? submeteríamos a paciente a tratamentos que poderiam ser eficazes ou não? Essas e outras perguntas permearam a longa conversa que tivemos. Nós, alunos, olhávamos aqueles rostos como se quiséssemos decifrar os sentimentos ali escondidos. Um filho chorava, uma filha cruzava os braços, um marido olhava em algum ponto perdido ali no chão. O que pensavam?
O MAIS COMPLEXO EM SE CONVERSAR COM OS FAMILIARES E EXPOR AS DECISÕES QUE GERALMENTE SÃO TOMADAS PELOS MÉDICOS É SABER QUANDO ESTAMOS NOS FAZENDO COMPREENDER. Ou ainda: qual será o pensamento deles quando o que temos a ofertar são apenas cuidados paliativos?
Em outro momento, conversando apenas com os internos, o médico disse que infelizmente nem sempre ganhávamos a luta travada. Porém, ele completou, no momento em que entendêssemos que nem sempre seria possível ganhar, ai sim, seríamos verdadeiramente médicos.
Não, não é fácil admitir assim que "perdemos". Mas a cada dia podemos continuar lutando para fazer o melhor pelos pacientes, tendo ou não previsão de cura.
A filha, por fim, disse que tinha uma dúvida:
- Olha, tô sendo sincera, meu medo é que não sejam tomadas as mesmas medidas com a minha mãe que seriam tomadas para uma paciente que tenha chances de cura.
Fiquei surpreendida pois, no dia anterior, o médico tinha comentado justamente isso conosco, que provavelmente esse seria o maior receio da filha que acompanhou a mãe em toda essa Via Crucis. E sua resposta foi seguramente a mesma nos dada no dia anterior:
- Não se preocupe. Em casos como esses, costumamos cuidar ainda "melhor" da paciente. Como não lhe podemos oferecer a cura, faremos o máximo para que sua estadia aqui seja a melhor possível, para que ela se encontre confortável e sem dor.
Ao final da conversa, braços descruzados, a filha agradecia pela atenção. Agora eram eles que iriam conversar entre si e definir os próximos passos da equipe.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O grande egoísmo

Imagem retirada de ela-aquariana.blogspot.com.br/
A paciente não havia gostado de mim. Todos falaram que ela era simpática, "um amor de pessoa", disseram uns, "a alegria da enfermaria"... Por que então quando eu fui examiná-la ela estava fria, não me respondia direito às perguntas, falava baixo e não aceitou bem os gracejos que eu havia feito? Pois bem, atendi-a formalmente, então. Estendi a mão e disse que a partir daquele momento eu e uma equipe iriamos acompanhá-la nos atendimentos. Fui embora com uma sensação de que eu não estava fazendo algo certo, como podia não cativá-la?
Sim, se eu a cativasse, sua vida seria como cheia de Sol... foi o que o Pequeno Príncipe ouviu e o que foi repassado a centenas de gerações. E eu não a cativara! Não fiz meu trabalho corretamente.

...

Na manhã seguinte, bem cedo, entrei no quarto em que ela estava e iniciei o questionamento usual: dormiu bem, está tossindo, a urina mudou de cor... em cinco minutinhos de conversa, iniciei o exame físico. Puxando abaixo dos olhos para ver que ela não estava corada. Avaliando alterações na pele em busca de focos infecciosos. Colocação das mãos em suspensão para ver que ela estava tremendo... Ela estava tremendo?
- Dona Fulana, quando foi que a senhora começou com esse tremor na sua mão?
- Quando eu comecei a tomar minhas medicações... mas eles ficaram piores porque eu tô nervosa. Queria sair desse hospital - sua voz estava embargada e em seus olhos o conhecido brilho de lágrimas que teimam em cair estava despontando.
Então tudo passou a fazer sentido. Por que eu não percebi antes? Ela estava há mais de uma semana no hospital e eu achando que poderia se comigo o problema. Puro egoismo. CLARO QUE DEIXEI PASSAR UMA COISA ESSENCIAL NO EXAME CLÍNICO: O SENTIMENTO. Aprendemos que o paciente nunca vem só com a doença, ele tem uma história, problemas com marido, casa para cuidar e a vizinha fofoqueira que fica comentando que "a Dona Fulana vive hospitalizada, o que será que ela tem?". Pacientes têm dias bons e dias ruins. E tem também médicos/estudantes que eles gostam e que eles não gostam, por que não? Mas esta paciente me ensinou que, algumas vezes, o nosso egoísmo é tão grande que não conseguimos enxergar o que nos salta aos olhos!

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Desliguem os aparelhos

Imagem retirada do blog sou-o-que-digo-e-penso.blogspot.com
Dava uma olhada na movimentação: horário de visita. Sempre me interesso em olhar essa relação de visitante-paciente. Lógico, não quero ouvir suas conversas, mas acho bonito o fato de o visitante manter o contato do paciente com o mundo externo, para além das paredes verdes daquele hospital.
De repente fora retirada do meu "transe" por uma senhora que me chamou ao leito da sua mãe. As lágrimas já haviam secado no seu rosto e faziam dois caminhos que cortavam seu rosto em pontos simétricos. Ela estava maquiada, porém seu semblante estava cansado, como o de alguém passou dias entre vindas ao hospital e idas para seu lar/trabalho. Seu tom de voz, um pouco elevado, me perguntava quem estava acompanhando o caso da mãe dela.

- Senhora, vou pegar o prontuário para identificar quem é o médico responsável por ela - eu disse.

Ela então disparou uma série de queixas que, certamente, estavam entaladas em sua garganta. Talvez ela tenha pensado em dizer isso há bastante tempo, mas lhe faltava coragem e, em meio ao desespero de ver sua mãe por tantos dias ali, em um leito hospitalar e respirando com o auxílio de aparelhos (e apenas pelo seu auxílio), ela decidiu dizer:

- Pelo amor de Deus, porque vocês não desligam logo esses aparelhos?

Lógico, ela não queria sua mãe morta: ela queria ela sem sofrimento. NÓS GERALMENTE NÃO PENSAMOS EM MORTE ATÉ DEPARARMOS ELA, MAS É IMPORTANTE QUE NOS QUESTIONEMOS QUAL SERIA O MAIS VIÁVEL, OU MENOS DOLOROSO, OU AINDA, QUAL SERIA O DESEJO DO PACIENTE SE ESTE ESTIVESSE EM CONDIÇÕES DE SE EXPRESSAR!
Depois que ela saiu, voltei ao leito e olhei a senhora já de idade bastante avançada. O que ela diria a sua filha? Talvez agradecesse pela coragem de se expressar, refletindo o que ela própria falaria. Talvez ela ficasse zangada pela mal-criação da sua "menina". O fato é que, ainda naquela tarde, depois de eu ter remoído diversas vezes as palavras que a filha havia me dito, a senhora veio a falecer, dando tempo de uma última visita da filha que sofria e dos outros familiares que sentirão falta daqueles cabelos branquinhos-branquinhos que por longos dias repousaram no lençol do hospital.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Série Outras Impressões - Uma Menina Talentosa

A série "Outras Impressões" traz, em sua sétima edição, o relato do médico recém-formado Levi Machado que nos impressiona pela leveza do falar e pelos dizeres cheios de uma amor que nossa profissão (ou futura profissão) nos dá: ai está a Medicina nos gritando o porquê de a termos escolhido!

Levi C. Machado - Médico
"Lembrou-me a minha época de interno – falo como se fizesse bastante tempo, mas foi quase um dia desses – ter o meu celular roubado em uma manhā qualquer do mês de Agosto.

Por que lembrou-me esse tempo tāo difícil o ter tido o telefone furtado? Será o meu segredo por enquanto, mas a lembrança fora justamente do último serviço que rodei aqui no Brasil em meados de Dezembro do ano passado, o posto da saúde comunitária.

Atender no posto como acadêmico de medicina é uma experiência interessante; esse talvez seja o único mês do internato em que o estudante realmente faz a diferença na conduta e avaliaçāo dos doentes, as vezes por falta de conhecimento, as vezes por falta de tempo daqueles que sāo responsáveis por esses serviços. Os pacientes nāo têm diagnósticos firmados nem sāo acompanhados em ambulatórios especializados, o que nivela um pouco o embate intelectual entre aluno e “mestre”. Nesse serviço, a opiniāo do estudante é realmente valorizada, o único em que ele se sente um pouco mais médico e menos aluno, e com uma vantagem: nāo há obrigaçāo quanto a produtividade; o estudante pode realizar a consulta que quiser, completa ou nem tanto, de acordo com sua personalidade ou conveniência.

Estava num dia daqueles, paciente e querendo realmente conhecer a fundo cada doente, buscar em seus sintomas uma doença rara que passara despercebida, melhorar cada prescriçāo por detalhes de farmacocinética ou perfil de efeitos colaterais. Num daqueles dias de pouca preguiça intelectual em que realmente aprecio a complexidade daquilo que faço ao invés de me maldizer dela. Usar a cabeça em raciocínios cartesianos complexos e produtivos me faz feliz – pelo menos nos dias certos. Naquele dia, adentrou uma menina, a quarta paciente de uma tarde longa, uma mocinha linda de uns 11 anos de idade, detentora de corpinho magro, rostinho arredondado, cabelos lisos castanho escuros e uns olhinhos levemente puxados que ostentavam com graça a genética indígena que carregava em si. Ela entrou faceira, segura de si, conduzindo a māe, que levava a sua irmāzinha de colo. Fazia contraste com qualquer paciente dessa idade, os quais geralmente entram acanhados, com receio e esperam a māe falar por eles tudo o que sentem; ela nāo, sentou-se e se apresentou:

- Oi, eu sou a Rayssa!

Admito, essa mocinha me cativou logo de cara. Todos os médicos também sāo gente e, apesar de todo o discurso do cuidado indiferenciado, temos a tendência de sermos mais minuciosos e cuidadosos para com pacientes de quem gostamos, um processo natural denominado contratransferência, do qual fala-se muito, mas de cuja discussāo excessiva pouco importa – só nāo deve ser exagerado.

- O que você sente Rayssa? – lhe perguntei
- Eu estou sentindo uma dor em pontada bem aqui – apontou com o dedo – ela as vezes vem para cá, piora com comida e quando eu me deito, passa logo, mas volta depois.

Intrigou-me instantaneamente o fato dela ter sido capaz de fornecer apenas com a pergunta inicial toda a descriçāo que eu precisava da dor. Apercebi-me de duas informaçōes: ela ia bastante ao médico e possuía muita capacidade de observaçāo e inteligência. Grande parte dos adultos diriam “uma dor cansada”, “uma dor forte”, e me exigiriam técnicas de simplificaçāo como exemplificaçāo e perguntas mais objetivas. E ela era uma mocinha apenas. A māe a interrompeu:

- Essa menina tá doente de novo. Vive gripada.
- A minha garganta dói um pouco e eu tusso, mas mais a noite, de dia nāo me incomoda tanto. Tudo começou há dois dias, mas vai passar. Já me acostumei com essas crises, elas duram 4 dias e eu fico boa depois.

Fiz-lhe algumas perguntas de praxe para descartar algumas enfermidades e examinei-a minuciosamente sem encontrar a causa dessa dor de estomago.

- Dr, ela toma um remédio também – notificou-me a māe ao notar o meu interesse em adquirir o máximo de informaçōes possíveis.
- Qual?
-A... Atritpi.... nāo sei...
- É amitriptilina, māe! – respondeu a menina, impaciente.

Ela provavelmente foi a única paciente atendida por mim que acertou o nome da droga de primeira, mas isso nāo me importava. “Por que ela toma isso!?”, pensei segurando a minha surpresa.

-Quem foi que passou esse remédio para você? – perguntei já me preparando para escutar uma barbaridade de conduta.
- Um doutor psiquiatra disse que eu tinha fibromialgia, sofria de muitas dores no corpo e o remédio ajuda um pouco.
- E como começou isso tudo?
- Começou quando o meu pai foi embora...

Ahh, se eu tivesse uma memória eidética para me lembrar com detalhes daquele discurso feito por uma garotinha abandonada. Ela se expressava com grande nível de detalhe e profundidade de pensamento, possuía um discurso direto, fluido e complexo para a sua idade, com uso perfeito das preposiçōes e conjunçōes, “Nossa! Ela se expressa bem melhor do que eu!”, pensei ao me ver admirando as suas habilidades lingüísticas, ainda cruas, mas que transmitiam grande emoçāo e denotavam um enorme talento: daqueles raros, que brilham mesmo nāo lapidados. JÁ ADMIREI MULHERES POR VÁRIOS MOTIVOS, FORÇA DE VONTADE, RESILIÊNCIA, BELEZA, SIMPATIA, ABNEGAÇÃO, AMOR, MAS ELA TALVEZ TENHA SIDO A ÚNICA QUE ADMIREI PELO TALENTO QUE POSSUÍA, TECIDO NA DOR E NA PERDA DA INOCÊNCIA.

A māe dela se ausentou para atender o telefone e deixou a sua filhinha de colo com a irmā. E a Rayssa se soltava ainda mais notando o meu interesse na sua história.

- Eu tomo conta dessa menina as vezes, mas é muito difícil. Ela é muito mal cuidada, há dias notei essa mancha no rosto dela, parece uma micose, mas a minha māe nāo liga; sempre preocupada com seus afazeres ou largada em qualquer canto da casa chorando e queixando-se do mundo. E o meu pai nem fala mais com a gente, nāo sei como um pai larga os filhos desse jeito só por causa da sua outra mulher – disse com grande expressāo emotiva que seria capaz de dilacerar os coraçōes mais duros. Ela continuou a transbordar a dor de ser abandonada pelo pai por ser mal quista pela madrasta com aquela bela linguagem, singela, mas com tanta coerência, concatenada, bem construída, emocionada e quase ritmada enquanto eu pensava:

“ahh, menininha talentosa, se você fosse a minha filha, mulher nenhuma do mundo me faria esquecer você”.

Discutimos diferenciais no posto que passearam sobre o problema imediato dela e outros possivelmente crônicos, mas nada disso me parecia suficiente. Ali tínhamos uma doença puramente social e emocional, algo além da nossa ciência e que nāo pode ser corrigido com remédios – por mais que nos enganemos.

Perguntei como era o seu desempenho na escola e ela me disse que faltava bastante, mas o conteúdo era muito fácil. “Mais um talento que nāo irá florescer” pensei com muito pesar na alma, pois pouco é capaz de entristecer-me tanto quanto potencial nāo alcançado – talvez porque eu viva a desperdiçar o meu. Peguei o seu telefone, pois me obrigavam a fazê-lo para constatar atendimentos – o rigor da vigilância aos estudantes é diretamente proporcional a falta de organizaçāo e comprometimento com o ensino deles – e gravei-o em meu celular.

“Algum dia, quando eu estiver em melhor situaçāo, eu vou ajudar essa menina!” Fiz essa promessa já imaginando-me como porto seguro dela, cultivando o seu talento e fazê-lo desabrochar. Queria dar-lhe condiçōes para ser o que ela quisesse, realizar qualquer desejo do seu âmago com o grande presente que ela tinha recebido do acaso. Ela poderia me superar em tudo, quem sabe até criar em mim um pouco de inveja junto ao grande orgulho que me daria, mas nada importava se de uma mocinha que nāo tinha nada, apenas potencial, fosse criado um diamante a brilhar com grande intensidade pelas intempéries da sua criaçāo e lapidaçāo zelosa.

Nunca me esqueci dessa garotinha, mesmo que o pensamento nāo se detivesse nela com tanta freqüência. E na tarde do furto, quando voltava para casa, percebi com pesar:

“Eu perdi o número dela...” sabia que todos os outros números, os dos amigos, das garotas, dos contatos profissionais, todos eram facilmente recuperáveis; o valor material do meu celular nāo me incomodava em nada; mas o número da Rayssa, esse eu nāo recuperaria. Estava perdido para mim, motivo de minha grande tristeza naquela tarde de arrependimentos por ter decepcionado a mim e também abandonado mais uma como tantas vezes já fiz: aquela menininha talentosa."