segunda-feira, 30 de julho de 2012

Vida sob uma linha

Imagem retirada de hscj.com.br
Todos da sala ficaram alarmados, como de costume, com a entrada daquele paciente em parada cardíaca. Havia, há pouco, comentado com um colega sobre uma postagem do blog (ler aqui) e o fato de que as reanimações cardíacas muitas vezes nos frustrava. Iniciaram-se os procedimentos de praxe e corremos para nos paramentar para a reanimação. O primeiro estudante, ele próprio, iniciou as massagens. "Um minuto", gritava a doutora que estava fazendo a contagem; "Troca", subiu outra colega para reanimá-lo.
Não conseguia parar de pensar no fato de que era um paciente relativamente jovem que estava ali, nas mãos da equipe, que dependia das massagens, das medicações, da eficiência do serviço, da sua própria constituição física e, sim, de sua sorte. Muitos fatores que influenciariam o seu retorno ao "ritmo cardíaco regular, em dois tempos, bulhas normofonéticas, sem sopro", e dentre estes fatores estávamos nós!
Quando me aproximei para massageá-lo, posicionei-me em frente ao seu tórax, mão dominante abaixo da outra mão, braços retos e comecei a contagem. Uma outra colega havia me dito na semana anterior uma maneira de contar o ritmo da massagem, mas desisti na quinta compressão porque aquele ritmo simplesmente não conseguia entrar no meu cérebro. Fui para o tradicional "e 1 e 2 e 3..." e fiquei assim pelos próximos dois minutos. Não sei, mas olhei apenas rapidamente para o rosto daquele senhor. Diferentemente da senhora do outro texto, naquele dia não queria que, além da minha frustração, os pensamentos sobre a sua vida e família me ficassem rondando por tanto tempo. Mas foi inevitável não pensar neles! E UM TURBILHÃO DE IMAGENS COMEÇOU A DANÇAR NA MINHA CABEÇA MAIS UMA VEZ, COMO SE QUISESSEM ME PROVAR QUE NÃO ADIANTA QUERER SEPARAR A RAZÃO DO CORAÇÃO, ELES ANDAM COM NAMORADOS, DIRIA ATÉ COMO RECÉM-NAMORADOS, MÃOS DADAS E BEIJINHOS: NÃO SE DESGRUDAM, NÃO ADIANTA!
Quando a voz da doutora me trouxe de volta à sala, vi que era hora de checar o pulso. Virei-me para o monitor e vi que a "linha de sua vida" estava pulsando. Mas isso não significaria muita coisa se a doutora não houvesse dito, junto a essa observação, que o paciente tinha pulso palpável. Ele tinha pulso!!! Tínhamos reanimado o paciente com sucesso! O meu colega olhou para mim e seus olhos tinham um brilho tão particular de quem diz " Conseguimos". A despeito da nossa vitória particular, os demais pareciam já ter visto isto demais. Nós dois não, ele repetia "Conseguimos", eu queria gritar! Nossa primeira reanimação com sucesso, como não ficar feliz?
Liguei para a minha mãe para avisar, disse ao meu namorado, comentei com os colegas. Claro, não havia feito nada sozinha, mas fiz um pouco pela volta daquele paciente. Ah, fiz sim!

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Eu, gripô

Imagem retirada de rafaelasahib.blogspot.com
Engraçado como são as coisas da vida. Parece que quando você é estudante da área da saúde, todos os seus amigos e parentes querem que você esteja 24hs agindo como profissional da saúde. E tudo isso se torna pior quando você adoece!
Esses dias estive doente e eu nunca (leia-se "nunca") gostei de tomar remédio. Tenho pena do meu fígado e me dói quando vejo as pessoas tomarem paracetamol como água. Sim, eles tomam. Isso é, inclusive, motivo de "mini-discussões" frequentes com meu namorado. Paracetamol e antibióticos.
Enfim, estive doente esses dias e acreditei ser uma bobagem. "Água e descanso" foi minha auto-prescrição! Depois vieram as "meisinhas" da minha mãe: tome suco de laranja que é ótimo pra isso, beba esse melzinho, cheire essa infusão de Vickâ e água, tome esse remédio. Eu fui piorando. Depois de três noites sem dormir, segui o conselho de amigos e mãe: fui ao médico.
Bem, eu estava mesmo doente, precisando de remédios e antibióticos. Remédios dos quais eu nem imaginei precisar.
Sim, nós da área da saúde queremos ser auto-suficientes, mas não é fácil. Além de não sabermos de tudo e de algumas vezes não pensarmos em certos diagnósticos (por não sermos especialistas naquela área), ainda tem os amigos/familiares para nos lembrar isso... e falar, falar, falar. Agradeço-os pela ajuda, claro. Mas escutei muito esses dias.
- Doutora, doutora, não quer se cuidar!
Agora a "doutora" está se cuidando e está "noiada". Comer de três em três horas e tomar todos os remédios mandados. A minha mãe agradece!




p.s.: Esse texto é dedicado à Lourdinha, Nati e Pedro Jorge.

Breve vida

Imagem retirada de citacoesepoesias.blogspot.com
O plantão estava agitado. Normal para o local que eu estava: estava na sala que recebia as pessoas com iminência ou em parada cardíaca.
O fato é que, lá pelas tantas, uma das pacientes para e já estavam reanimando-a quando eu cheguei. "E um e dois e três..." contava-se as compressões que eram feitas naquele peito que subia e descia apenas por causa do respirador manual.
Eu ainda não havia reanimado ninguém lá, então a médica olhou para mim e disse que eu o fizesse.
Procurei a escadinha e comecei a minha contagem. Há quem diga que os dois minutos de massagem cardíaca são os mais longos do dia-a-dia do médico. E são! Mas cada pessoa tem seus motivos para dizer isso, e aqui digo os meus.
A senhora tinha aproximadamente cinquenta e tantos anos e seus olhos estavam com aquele brilho cego que ninguém quer vislumbrar. O olhar no nada olhava para mim, eu sabia, e aqui dentro alguma coisa pedia: volte à vida, volte à vida. Claro que aprendemos na faculdade que é necessário desprender-se de alguns sentimentos para poder seguir na profissão, tal qual uma freira que, por percorrer diversas instituições, não se deve apegar demais aos convivas. Bem, não sou freira. Nem boa futura médica, então. Foi inevitável pensar nos familiares daquela mulher e nos muitos anos que ela teria pela frente. Foi inevitável encarar aqueles olhos e fazer uma breve oração (ou seria um mantra?): volte à vida, volte à vida.
Fiz ainda outro ciclo de massagem torácica e me dei conta de que essa sensação, de que aquela pessoa tem sim uma história, me acompanharia em todas as reanimações. Foi assim na primeira vez, na segunda, na terceira. Foi assim quando eu vi o senhor também de meia idade parar na minha frente e todos naquela sala caminharem com calma. Engraçado que dia desses li em um renomado livro de emergências médicas que o médico emergencista deve ter, entre outras qualidades, calma em situações extremas. O que tenho a dizer é que tenho muito que aprender ainda! Mas que espero não desaprender esse sentimento que me faz amar a Medicina.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Série "Outras Impressões" - Sobre Médicos



A sexta edição da série "Outras Impressões" compartilho um texto que me fora apresentado pelo acadêmico Jean Souza, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, e que, depois, achei-o na Página Pensamentos Leosavassianos (Quer conhecê-la e curti-la? Clique aqui). Muito bom, cheio de uma boa verdade que doi, mas que é necessária. A autoria do texto é de (assim está escrito) Francisco Rocha, médico de alma, e o título é "Sobre médicos". Vale a pena ler na íntegra!


Imagem da Página Pensamentos Leosavassianos, de propriedade de Leonardo C. M. Savassi
"Sobre Médicos
Por Francisco Rocha, médico de alma.

Olha, somos, sim, muito mal pagos. Desculpem-me todas as outras profissões (que também são mal pagas), mas nós lidamos com a morte o tempo todo, seja para afastá-la por mais tempo ou dando conforto para sua chegada cada vez mais próxima, ouvimos dores o tempo todo, seja o médico psiquiatra ou cirurgião, somos quase sempre os vilões: para a mídia, nós não atendemos pacientes, nós recusamos cirurgias, não fazemos partos, estamos interessados somente em prescrever remédios para ganhar vantagens da indústria farmacêutica; para os pacientes, temos má vontade em atender, atendemos com pressa, somos grossos se não estamos de bom humor, somos preguiçosos se dormimos no plantão, somos demorados se fazemos hora do almoço, somos o capeta se o paciente morre mesmo que tenhamos feito de tudo, somos santos (e é tão pesado ser santo quanto demônio) se o paciente se salva; para nossos empregadores (planos, serviço público) somos produtividade apenas, ferramentas de propaganda política, lucro; para nossos colegas somos menores se não temos residências mil, somos medíocres se somos "somente" médicos de família, bruxos se somos Psiquiatra, carniceiros se somos cirurgiões, arrogantes se somos neurocirurgiões, menos capazes se cuidamos só de crianças, nem médicos somos se somos radiologistas ou patologistas. Para todas as outras profissões somos metidos, reclamões.
Poxa, estudamos, sim, por mais tempo, nosso curso é muito difícil se levado a sério, e não é difícil por causa das disciplinas, porque para mim nada é mais difícil do que física, por exemplo, mas difícil pela responsabilidade da nossa profissão. Quando se faz Medicina por amor, como eu faço, sabe-se que, quanto mais sabemos, mais ferramentas para matar o paciente se tem. Sim, matar, porque é muito mais fácil cometer um erro quando se tem mais opções. Quando decidimos um tratamento, por mais simples que este possa ser, há implicações, há reações adversas mil que podem ocorrer e matar o paciente.
Para nós, que fazemos Medicina por amor, o final é o paciente, não é o dinheiro, o sucesso. SOMOS MAL PAGOS E MAL VISTOS E CÁ ESTAMOS SORRINDO PARA CADA PACIENTE QUE AGRADECE O FATO DE NÃO SENTIR MAIS DOR.
Tenho vários amigos em várias profissões e eles são muito competentes, excelentes, crânios, mas afirmo com quase certeza (porque a certeza absoluta é burra) que nenhum deles daria conta de uma jornada de trabalho nossa de oito horas.
Medicina é vida e morte e não há nada mais complexo do que viver e morrer.
Por isso, antes de reclamar dos médicos, de falar que nós nos queixamos à toa, coloque-se no nosso lugar. E perceberam como escrevi na primeira pessoa do plural? É porque eu não me vejo médico sozinho, sou médico com todos os meus colegas que, né, poderiam passar a ter essa consciência de classe.
NÃO SOMOS SUPERIORES NEM INFERIORES, SOMOS MÉDICOS E PACIENTES. Já pensaram como isso é difícil? Se por um lado sentimos a alegria duas vezes, a dor também vem em dobro e continuamos sorrir porque não sabemos fazer outra coisa no final do dia.

Por Francisco Rocha, médico de alma."

domingo, 1 de julho de 2012

Não tenho como te responder...

Imagem retirada de aromais.blogspot.com
Ele seguiu o médico calmamente para detrás do biombo, onde seria realizado o exame físico. Os olhos da sua esposa o acompanhavam parecendo querer segurá-lo para que não caísse. O paciente estava bastante debilitado. Havia passado por algumas sessões de quimio e radioterapia e vinha em acompanhamento. Porém, apresentou alterações no PSA (exame para análise de doenças da próstata). Assim que o percebera fora daquele ambiente, virou para nós, meros estudantes, com seus olhos tão cheios de súplica e perguntou:
- Vocês acham que esse exame alterado é alguma coisa? Será que ele está doente de novo?
Como responder a isto? Nesses momentos é que percebemos duas coisas importantes: não sabemos tanto para explicar aos pacientes/parentes e somos, entretanto, peça fundamental em alguns tipos de atendimento. Algumas vezes os acompanhante não têm coragem de perguntar ao médico (ou este não deixa que eles falem). Daí nos sobra a importante tarefa de fornecer informação de qualidade e de, principalmente, confortar os familiares.
Bem, o fato é que os olhos daquela mulher me fizeram pensar que eu não seria tão capaz assim de responder. ELES TINHAM UMA PROFUNDIDADE DE QUEM TEMIA A RESPOSTA, DE QUEM SABIA QUE A VIDA É EFÊMERA E QUE SEU MARIDO PODERIA PROVAR-LHE ISSOOs acompanhantes dos pacientes, muitas vezes, tem uma carga tão pesada quanto a do próprio doente. Eles podem não ter as náuseas frequentes, dores no corpo ou a perda da acuidade visual, mas sofrem por ver quem ama passar por tudo isso. Alguns deles aguentam o choro, a angústia, o silêncio e a agressividade do seu ente, sabendo que podem apenas apoiá-lo.
Àquela mulher foi dito que mais exames deveriam ser realizados para chegar ao diagnóstico, mas aquilo não bastava para ela, que passaria 24 horas ao lado dele, seu marido, sem saber se ele estava doente outra vez. Então pedi-lhe apenas o que era possível naquele momento, possível para mim e para ela: pedi-lhe para tentar se manter forte porque ele precisava daquela fortaleza, precisava de alguém que o mantivesse de pé.
Ao final da consulta, ela nos agradeceu, um a um, e eu soube que o que podíamos fazer por ela fora feito. E soube que os parentes também precisam desse nosso remédio chamado Atenção!